Ruben A., O Mundo à Minha Procura II, 1966.
(...) [Em Cascais] Uma corte destronada. Precisamente nessa corte todos se formavam nas escolas superiores, mas só se diplomavam em três cursos - Direito, Medicina e Engenharia. Os agrónomos, os falhados, coisa de segunda classe, os de Letras nem existiam, ninguém sabia o que era isso de Letras; de Filosofia e de História só se lembravam de D. Carlos, que aparecia na praia a banhos por altura de setembro e passeava no seu grande iate, para aos fins da tarde jogar ténis na Parada. Esta a história que sabiam e a que contavam, uma história saudosista, imaculada de pecado maior, sem cheiro de vida, história de carochinha que de uns passava para os outros na verdade que contenta uma criança para não chorar mais.
Havia assim três cursos que na minha sociedade se tiravam - mantido o de Direito em primeiro lugar. Ia tudo para Direito. Fazer o quê? Ninguém sabia, e também pouca importância tinha. Todos, mais cedo ou mais tarde, ingressariam nos negócios dos pais, nas casas comerciais ou bancárias que os avós haviam estabelecido na praça da capital. Direito, como se dizia então, serve para tudo, até para se ser burro. Tirar o curso e não tugir nem mugir, assim é que estava bem.
Para os técnicos ficava a Medicina, também hereditária nos consultórios, e a engenharia, que dava uns laivos de entusiasmo logo depois da formatura; podia-se laurear para os cimentos, carvões, minas, construção de estradas, portos, azotos, e ainda não haviam surgido, com o seu imenso caudal, as grandes represas fluviais...
E eu a falhar no Direito! Que coisa mais absurda. Realmente, todos ao meu lado eram alunos de Direito ou futuros alunos. «Então já estás na Faculdade?» «Para o ano entras.» «É chato, mas a família diz que é o melhor curso. Está lá toda a malta conhecida.» «Estuda-se tudo de cor, só precisas de saber o que vem na sebenta, o resto nem fazem perguntas.» E eu que tanto havia decorado, parecia-me que este curso de decoração metódica, esquizofrénica, imobiliária, seria o curso realmente indicado para tirar. O pior é se me esquecia do que tinha decorado! E sabia bem que o meu pai gostaria de ver o filho com o curso de Direito, seguir a carreira de Coimbra que ele há tantos anos - no tempo de D. Carlos - havia concluído. E era lógico que assim fosse. Nascido numa alta burguesia, constantemente a casar com os restos amolecidos da aristocracia - essa mesma alta burguesia iria dentro em breve dominar o País. O País criava-se como a nossa teta, estava às ordens daquilo que fossem os nossos desejos. Eu não percebia nada, isto vim a compreender muitos anos passados. De forma que íamos sendo construídos para os lugares de directores, de administradores, de ministros, de chefes; longe o amanuense - que mais tarde eu seria - que só causava tristeza nos quadros mentais dos meus amigos.
Realmente, os que se formavam raro tinham dificuldades: uns iam para as casas bancárias - Espíritos Santos - outros para Pinto Bastos, outros entravam nos negócios de família, começavam a sacar com o curso de Direito. Impunham-se à nossa praça e, na indústria ainda periclitante, davam audiência com o chapéu na cabeça. E eu sem conseguir passar nos exames! Um anormal a quem não perdoariam. Restava-me, acaso não concluísse o curso, um emprego de favor dos outros, daqueles que estavam estabelecidos já, com os casamentos ou com o dinheiro. Eldorado de um mero manga de alpaca na Shell, no Ultramarino, na Mobil, ou talvez em África, onde os falhados continuavam falhados, como outrora os do Porto no Banco Inglês. (...)
E gastamo-nos nós a perguntar à história, que mala-pata nos corroeu a vida! Andamos distraídos. Houve sempre mais história exilada numa página de literatura, do que numa estante inteira de tratados dos especialistas dela! Só os crédulos não sabem que há mil maneiras de pagar aos serviçais.