Já um dia se falou aqui deste melro escriturário, a propósito dum romancinho que foi prémio Revelação. O Mário Assis Ferreira, da Sociedade Estoril-Sol, que é também editor da revista Egoísta, resolveu patrocinar um prémio literário, que estas coisas dão cachet e nome à casa. A madrinha estava à altura, era nem mais que a Agustina. A importância deste pormenor já se vira em casos semelhantes.
Depois convidou um júri, abrangente e vultuoso, para dar consistência à coisa: era ele o Graça Moura, e o Oliveira Martins do CNC, e o José Manuel Mendes da APE, e a Maria Gil Loureiro do Livro e das Bibliotecas, e o Manuel Frias Martins dos críticos literários, e a Alzira Seixo e o Liberto Cruz em nome da própria sombra, e o Lima de Carvalho e o Dinis de Abreu pela Estoril-Sol.
Nenhum dos membros do júri resistiria a uma página do texto. Mas o prémio lá saiu ao melro, como podia ter saído a qualquer outro parecido.*** Porque a questão fundamental não era a Literatura, antes o marketing. O júri e a madrinha sabiam-no muito bem desde a primeira hora, e todos eles se puseram a jeito porque se tomam por gente civilizada e terminante. Nenhum deles demorou um olhar no romancinho, editado pela Gradiva, porque o Rodrigues dos Santos não há-de ser toda a vida o mais lido dos escriturários. E lá na casa é sabido que o editor de sucesso não lê livros, faz dinheiro.
Ficaram assim as coisas neste pé. Eis senão quando, embalado pelo sucesso, o melro escriturário reincidiu, com outro romancinho a que chamou Mil Novecentos e Setenta e Cinco. Tempos de brasa, título de fogo! As pechas do primeiro romancinho estão todas no segundo, e em pior, porque o assunto é uma coisa muito séria. Porém um publicista, que tem coluna na Sábado sobre as faunas escreventes deste mundo, caiu-lhe o livro na mão. O autor já traz um Revelação, e eu por mim aqui me avio, que a revista está à espera. E lá vai disto!
O leitor, um totó que mistura livros com chouriços e sacos de composto para manjericos, cultiva-se e deixa-se ir.
A coisa entra assim em roda livre. E aqui para nós, já alguém viu alguma vez a Constituição da República pagar a renda da casa, ou dar trabalho a quem precisa dele, conforme o outro disse? É que o princípio é o mesmo, e puseram-no em vigor!
*** É uma ingenuidade pensarmos que o irrealismo patético, a inépcia primária e o absoluto desconsolo estético do romancinho são alheios à atribuição do prémio. Bem ao contrário, antes são dela essencial argumento.
Imaginemos que o romancinho era uma coisa séria, um bom produto das artes literárias a merecer a distinção, a abarrotar de conteúdos (mormente se ideológicos!), a exigir do leitor um trabalhão! Logo deixaria de cumprir a função para que foi convocado. Que é institucional, decorativa, como a nuvem que povoa um céu vazio.
O que é que pode fazer quem gosta de literatura?! Só estar atento. E desejar longa vida aos melros escriturários que aí andam, e precisam muito dela. Vão durar muito mais tempo do que as suas criações!