quarta-feira, 28 de setembro de 2011

da capo

Pegos floridos

E só voltou a encontrá-la muitos anos mais tarde, acabado de regressar a Vale do Açor, depois de consumir, num estanco de barbeiro carioca, os seus melhores trinta anos. Tinha ido espairecer a alma solitária ao Senhor da Pedra, ali abaixo de Moreira de Rei, talvez conheça. Naquele tempo era a romaria mais popular da redondeza, não havia cão nem gato que não aproveitasse o sol novo da Páscoa para dar um prazer ao corpo, escarmentado pelas rudezas do inverno. Ele havia merendas colectivas pelos outeiros, qualquer um mais descarado podia associar-se, havia bailes de concertina nos largos e terreiros, e sociedades de pândegos que se armavam, tarde fora, à volta duma cartola de palheto, plantada ali sobre dois cavaletes.
Antes, porém, havia a missa e o sermão, em que o povo era chamado a capítulo. Nesse tempo era assim, e mal visto ficava o pregador que não deixasse a fungar meia capela. Depois a procissão descia ao vale e voltava a subir a encosta, era aquilo uma serpente colorida a espreguiçar-se por rodeiras e canadas, lenta e compassada, não fosse algum santo sofrer um tropeção e cair do andor.
Contou-me depois que ficara, solitário, à sombra dum carvalho sobranceiro ao adro da capela, sem devoção bastante para tão rudes andanças, a ver recolher a procissão, quando a viu a passar. E disse-me que sentira, neste passo, o coração a saltar-lhe do peito, a querer impor-lhe, embora mal parecesse, a pergunta derradeira, uma última fala com ela.
É que lhe ficara sem resposta o mistério fatal, um enigma cerrado, desde o dia funesto em que descera a correr a ladeira sem fim da Sobreposta, caminho do moinho, onde passou a tarde a ajudá-la na horta. Ia bem, o namoro, a um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar, e um jeito manso de mãos que punha a bulir o peito, só de vê-lo. E foi ao morrer da tarde que ele deixou cair a pergunta, quando é que hei-de cá tornar, a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e quando os moirões estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Isto disse e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
Voltou ele a subir a ladeira sem fim da Sobreposta, e chegou a casa já de noite. A cabeça em desconcerto largava perguntas às estrelas, quando estarão os pegos já floridos, e onde os tais moirões caídos, e que mortos a enterrar que vivos. Mas se do céu caiu algum sinal não pôde ele entendê-lo, nunca mais encontrou a hora de voltar.
Quando a viu ao recolher da procissão, gastou um ror de tempo a vencer embaraços, a reconhecer-lhe ao longe a silhueta já pacificada, a estudar-lhe nos modos algum jeito dos antigos sinais, até que se tornou azada a ocasião. Vinha ela a sair o portal da capela, no meio doutras devotas, e logo ele apareceu à mão esquerda, abrindo caminho no adjunto, como quem vai apenas a passar. Entre a hesitação e a surpresa, os olhos negros dela pareceram-lhe cansados, por um momento pareceram-lhe aflitos, pareceram-lhe perdidos. Alguns cabelos, que o lenço deixava a descoberto, não tinham já a antiga luz da seda. E o peito, debaixo da blusa de ramagens, tinha agora uma vastidão inesperada, mas guardava a placidez benigna das imagens doutro tempo.
Uma ira zangada veio em breve a toldar-lhe o semblante, desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros, hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, homens já feitos, nunca mais lá tornaste, e os olhos a fugirem, perturbados. E as mãos dele a afoitarem-se para ela, nunca resolvi o teu mistério nem atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e aqui me hás-de dizer que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, na face uma rosa a abrir. Florescem os pegos todos, à hora em que neles dá o lume das estrelas. Caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam. E os mortos enterram os vivos, quando só restarem cinzas num fogo que se apagou. Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Havia noutro tempo destinos assim, talvez já tenha visto. Bem piores até que o destes dois. Que lá foram, disputando, por entre a multidão, parecia haverem florido todos os pegos do mundo.