segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Portugalmente (24)

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Tantos são os atalhos e emoções por onde este viajante se perdeu, que o dia ameaça terminar sem estar à vista o fim da jornada. Por isso deixa para trás a placa a anunciar Vila Novinha, decidido a não parar. Perderá ocasião de ver o S. Brás dos Montes, ali aos pés do Almansor, bom advogado dos males de garganta e afamado protector de gados. Já foi um Senhor da Pedra, antes de ser o que é hoje. E o viajante suspeita de que, em tempos muito antigos, aqui perdido entre os bosques, já foi lugar de cultos pagãos, donde se espavoriam os maus espíritos à força de alaridos, de estrondeios, e de golpes de chuço e de bordão. Hoje é um bom pretexto de farnéis e arruadas de bombos, de gritarias e cenas de varapau entre as maltas de Miguel Choco, do Carapito e outras. Tal é, pelo menos, a fama que lhe ficou.
Vai o viajante a pensar nestas guerras de Tróia, quando lhe esbarram os olhos numa construção ainda mais surpreendente do que algumas que tem visto. Ainda bem que logo à frente surge um local de paragem, diante dum café, o viajante quer apreciar a obra. É um volume de três pisos de pedra, que mantém em respeito o monte do Almansor. Um largo varandim gradeado enlaça toda a construção, que assenta em duas idas de arcaria sobreposta. Do vasto pátio empedrado ergue-se um escadório lateral, orlado de ferros fundidos, que sobem ao andar nobre. E as cristas de cedro exótico, a espreitar lá de cima, deixam adivinhar o jardim nas traseiras, à cota do primeiro andar.
O viajante já fez juramento de não ceder a espantos, e faz questão de manter a promessa. Consola-se num renque de carvalhos antigos, e de freixos que vão à borda da estrada, oxalá tenha o S. Brás dos Montes em bom aconchego as mãos que os plantaram, há cem anos. E aproveita a pausa para beber um café, ali mesmo à mão.
Quem está dentro do estanco é Palmiro, a conversar com um amigo, enquanto bebe a sua cerveja. Acabou de chegar duma courela onde cultiva abóboras. Palmiro esteve muitos anos em Lisboa, a fazer leituras e cobranças na companhia das águas. Reformou-se há uns anos e regressou à aldeia, já perdeu os ares que tinha, de andarilho, por praças e ruelas. Agora é um camponês que se dedica às pequenas terras que os pais deixaram.
Há dois anos teve uma boa colheita de batatas, e alguma esperança de que dessem bom preço. Guardou-as até depois do S. Brás, quando elas começaram a grelar, mas depois tanto mirravam as batatas como os preços. No fim da história, quem mais ganhou foi uma vitela pequena que trouxe para casa. Comeu-as e engordou. Mal fez ele em não a despachar aos vinte e dois meses, que era a altura certa e valia bom dinheiro. Quando a deixou chegar aos trinta, só um favor privado do marchante lha tirou de casa, por metade do preço.
Agora só cultiva abóboras. Ceva dois porquitos, mata-os quando chega o inverno, e nem se importa das leis nem das ordens da Europa. Há leis e fundos para tudo, mas só dão dinheiro a quem o tem. A quem tem terras, às vezes uns cabeços no pico do monte, como esses de Benvende, da Ponte, de Aguiar. Surribam-se umas fragas, enterram-se nelas uns pés logo deixados ao abandono, passados anos nem sinais ficaram. Ou então estendem-se uns arames, mete-se lá o gado ao deus-dará, e enquanto dura, vida doçura. Não há melhor indústria que essa dos projectos, sempre enrolada em muito segredo, que é a alma do negócio. E tanto importa o que se cria, como o que se promete, o mesmo que nada. O ponto está em falar com quem se deve, e deixar o dinheiro correr.
Ao viajante, que muito aprende quando se põe a ouvir, vem-lhe à lembrança o avião que achou estacionado ali numa colina. Havia uns vultos de choupo, ou coisa assim, a negrejar no descampado, afogados no capim. O viajante não sabia que era um projecto de florestação a fundo perdido. Ficou agora a sabê-lo, por acaso, que estas coisas são matéria reservada. E, se não quiser passar a vida a equivocar-se, o melhor é ir afeiçoando os olhos a decifrar na paisagem os projectos da moderna agricultura.
Quando chega a Rio de Mel já a paisagem se dissolveu no lusco-fusco, já se vão cerrando as pálpebras da noite. O viajante vinha cheio de curiosidade em verificar se as graças da terra correspondem aos encantos do nome. Mas já não é hoje que poderá sabê-lo.
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