sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Portugalmente (26)

(...)
Dizem os roteiros que esteve este lugar, em seu devido tempo, na posse dos Coutinhos. E que em certo momento, sabe-se lá porquê, se achou despovoado. Ora como terras ermas não vencem corveias, Gonçalo Vasques, o tal Coutinho que era alcaide de Trancoso, e teve o seu papel nas contendas com os castelhanos que tinham ido a saquear Viseu, pediu a el-rei uma estrada que, de Trancoso a Lamego, passasse por aqui. Era uma forma de atrair povoadores que ainda hoje faz escola, pensa isto o viajante, ao lembrar-se do empenho com que os autarcas de agora vêm reclamando vias rápidas e comboios de alta velocidade que lhes parem à porta.
Por alguma forte razão concedeu el-rei muito mais do que lhe foi pedido. E oito léguas em redor fez-se ouvir o pregão a convocar moradores, muitos deles terão acorrido, em vista das pesadas multas. O viajante não quer acreditar na moscambilha que agora mesmo lhe veio à cabeça. Mas na verdade, por trás de tão incerto rio de mel, podia muito bem andar a mão do tal Coutinho, que pôs a correr o fastoso topónimo, só para tornar o pregão mais atractivo.
Está o viajante abandonado a tais cogitações, sem solução para o enigma, quando lhe passa ao lado um salvador. É um homem alentado de carnes, já entrado na idade, que veio a dar o seu passeio apoiado num bastão de pau preto. Lá lhe pareceu perdido este viajante, a olhar para os seus papéis, não custa nada dar-lhe uma mãozinha. Este agradeceu, e achou por bem apresentar-se.
- Pois eu chamo-me Salvador, e já passei dos setenta! Há quase trinta cheguei eu de Angola!
Salvador era funcionário judicial e regressou de África na debandada de 75, quando as caravelas voltaram todas ao cais.
- Quinhentos anos de história para no fim entregarem tudo aquilo a troco de nada, uma vergonha! Bom era o Galvão de Melo, mas não o deixaram falar! Eu deixei lá um terreno tirado à barriga! E ainda hoje sei muito bem onde está enterrada uma garrafa cheia de diamantes!
Esteja lá onde estiver, o mais certo é vir essa garrafa a mudar um dia a vida de alguém. Quanto ao resto, ninguém poderá ver daqui o monte do Almansor, se lhe mantiver voltas as costas. E o viajante sempre ouviu dizer que o maior cego é o que não quer ver. Se o seu amigo Salvador, passados trinta anos de frustração e raivas, ainda não descobriu onde estão as causas da tragédia que o fez enterrar na areia a garrafa dos diamantes, não serão duas palavras singelas que vão agora fazê-lo perceber.
Aqui chegado, ao viajante compete-lhe mover-se com pezinhos de lã, pois sabe muito bem que lhe caiu de repente nas mãos uma grande ferida de alma, se a alma da nação as não tiver maiores. Também nele deixaram tão vastos impérios cicatrizes e memórias bastantes, porém muito diferente é o seu modo de lamber umas, e interpretar as outras. Não quer abrir agora um conflito mais que certo, e propõe-se acompanhar Salvador no seu passeio, enquanto conversam os dois.
Salvador possui um novo terreno para os lados da ribeira. Plantou-o de castanheiros, mas já o pôs à venda. Amanhá-lo é coisa que ele já não pode, e, por mais que um homem pague, não se encontra ninguém para trabalhar na terra. O viajante, que já traz de cor o relatório ouvido em conversas passadas, faz a pergunta que o tem intrigado toda a manhã, como foi que Rio de Mel granjeou um tal nome.
- O rio de mel está aqui à sua frente! É esta ribeira que começa a juntar águas além no Cadouço, desce a deslado do Marvão, passa ali à Mina, e havia de correr aqui aos nossos pés, se não estivéssemos no verão e a seca não fosse esta fatalidade que se vê.
O viajante, que muito se compraz com imagens de estilo e tropos de linguagem, não fica satisfeito. Porque apenas viu deslizar o enigma do lugar para o rio que o banha, com perdão do exagero. Mas Salvador também não acredita na moscambilha do Gonçalo Vasques, que o viajante sugeriu. Salvador prefere o seu próprio enredo.
- Muito antes desse tal Coutinho, e muito antes de haver esta terra e uma estrada, passava por aqui uma via antiga, daquelas que duravam vidas. Descia da Guarda pelas ladeiras do Tintinolho, atravessava o Mondego ao fundo da Ramalhosa e tornava a cruzá-lo na ponte do Ladrão, passava a ribeira dos Carnicães no sítio das olas, muito perto da estação dos comboios, alongava-se até Freches onde saltava o ribeiro numa ponte que ainda lá está, subia dali a Trancoso e rumava para as terras do demo. Então não existia ainda este lugar, mas foi por esta rota que passou um dia um romeiro fidalgo a caminho de Santiago, e aqui matou as sedes que trazia acumuladas, as suas e as da cavalgadura. Tão bem lhe caíram as águas, que logo à ribeirinha crismou de rio de mel. Ora aí tem o senhor!
(...)