terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Lesa-inteligência, lesa-património, lesa-pátria!

As energias limpas são uma coisa vital, mormente num país que outras não tem. Mas as barragens, sendo inevitáveis, não são criações inofensivas. As águas submergem valores, e em seu entorno afundam patrimónios. Por isso cada uma é um compromisso, com preço muito exacto no jogo do perde-ganha.

Em 1995, um primeiro ministro decidido suspendeu a barragem de Foz-Côa. Os cavalinhos picotados numas pedras, 30 mil anos mais coisa menos coisa, eram património valioso, e haviam de trazer à região a riqueza que doutro lado não vinha. A EDP recebeu 20 milhões para compensar os trabalhos já feitos.

Alguém sugeriu ainda que a tecnologia tornava possível conjugar a construção da barragem e a sobrevivência dos auroques. E até um visionário, se não era o Júlio Verne, falou dumas campânulas de vidro, coisa e tal.
Mas a nossa atávica ligeireza, quando não é fatal incompetência, arrumou rapidamente o assunto. E se descontarmos nós a ruína paisagística que os citados trabalhos deixaram para trás (e lá está como vergonha) o mundo ficaria em equilíbrio.

Mas o tempo é um relógio que não pára, para desassossego nosso. E já mostrou dados novos. O primeiro é que os auroques não trouxeram a revolução apregoada. Tiveram no ano passado 14 mil visitantes, um décimo dos previstos. E são agora as estruturas de apoio que estão a trabalhar a meio tempo.

E são esses os mesmos cavalinhos que a tecnologia permite desmontar, permite salvaguardar, permite deslocalizar, sacrificando, é claro, o contexto geográfico.

O segundo dado novo, verdadeiramente trágico, é que a energia do Côa acaba por ser trocada pela energia do Tua e do Sabor. Onde tudo o que se perde é sem remédio. Sobre esta última não me pronuncio, faltam os dados e as obras já começaram. Mas sobre o Tua não creio que haja dúvidas: o património que ali se afundará inevitavelmente é mais único e muito mais valioso que os ganhos que ela trouxer.

Porém o que entre nós é comum há muitos anos, que é imolar o comboio a ganâncias pouco confessáveis, está no Tua em marcha acelerada. A degradação da linha é apenas um sinal.

Se em Portugal pudesse haver algum dia (tal coisa nunca existiu) um governo a merecer esse nome, corrigia ainda hoje o voluntarismo amador. Salvava do naufrágio os auroques do Côa, recolhia-os no museu que finalmente fizeram, para que não seja ele próprio mais um objecto inútil. E mandava retomar a barragem do Côa.

Punha na ordem uma dúzia de engenheiros e não afogaria o vale do Tua. Para não cometer um crime de lesa-inteligência, um crime de lesa-património, um crime de lesa-pátria.
Claro está que uma tal coisa, só por obra dum milagre!