quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Portugalmente (28)

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Do alto do Marvão avista-se, para leste, uma coluna de fumo a crescer no céu quente. E quente é um modo de dizer, porque este sol parece fogo. Mas o viajante pela-se por uma boa paisagem, como já confessou. Não quer desperdiçar a ocasião de subir a uns fraguedos que além estão, e saborear o amplo panorama. Aventura-se a pé por uma rodeira que vai para os altos do Cadouço, e para as lonjuras do Vale dos Lobos que aparecem no mapa, disposto a pôr-se à prova.
A carreteira atravessa um vasto plaino, onde começa a juntar águas o tão falado rio de mel, conforme Salvador explicou. Mas o olhar do viajante já perdeu a inocência original, e a disposição estranha do terreno começa a chamar-lhe a atenção. Apesar desta canícula, a fazer lembrar os portais do inferno, mete-se a corta-mato e vai investigar. O solo está rasgado por valas profundas, parece que andou aqui a lavrar um arado gigantesco, que deixou sulcos de um metro de fundura. E foi arada de máquinas potentes, porque arrastaram pesados pedregulhos, destruíram lenteiros do monte, e revolveram cabeços bravios. Além disso há-de ser um trabalho antigo, que muitas valas já estão outra vez arrasadas pelo tempo. O mato e o capim cobriram o plaino inteiro, e o viajante vai andando ao acaso, sem entender que labutas de Hércules houve aqui.
Por fim, após tropeçar no primeiro, tropeça o viajante num segundo. Não se pode chamar a isto castanheiros, pois não passam de arbustos minúsculos, que alguém um dia deixou enforcados no cimo dos camalhões. Sobreviveram aqui por milagre três folhas afogadas no mato, que não durarão muito. E são o que resta dum projecto de florestação a fundo perdido, que se estendeu aqui por dezenas de hectares. Primeiro o viajante não resiste ao espanto, depois abandona-se a um azedume impotente. E não ficará surpreendido, se um dia alguém vier a ter de pagar tudo isto com língua de palmo.
Para lá do horizonte, a coluna de fumo vai tomando a forma dum cogumelo de Hiroshima. O fogo é lá para a terra quente, parece na Cogula, talvez nas Ervas Tenras, o viajante não sabe distinguir. Mesmo do cimo destes fraguedos, onde grimpou a suar em bica. No céu alto, abandonado aos caprichos da brisa, um gavião volteia em círculos, não há mais movimentos na vastidão do mundo.
Depois de consultar novamente os seus mapas, o viajante decide acompanhar a carreteira e subir monte acima. Lá no alto encontra um pastor, que tem um chão aqui, entre a terra e o céu, e onde umas cabras malhadas andam a tasquinhar numa seara de milho. Algumas empinam-se aos ramos duns castanheiros, ainda juvenis, ou cabras não fossem elas. Porém o cabreiro tem voz dura e fácil o praguejar, e a calhoada certeira em sendo necessário, como agora se viu. Ao ver aproximar-se o viajante, romeiro ainda mais perdido que o outro de Rio de Mel, Manuel cabreiro sai-lhe ao caminho.
- Ia recolher as cabras, que não se agradam deste sol. Mas vi-o vir lá ao fundo e fiquei-me a esperar. A que anda por aqui?
- A ver o Vale dos Lobos, pois a quê! Há mais que ver?
Numa serra encontram-se dois homens, não há vivalma em léguas ao redor. Aos poucos se conhecem e dão a conhecer, o mais certo é acabarem a repartir a merenda que houver. Aqui vai para o viajante a vantagem maior, que é um frei João-Sem-Cuidados e saiu de casa sem farnel. Consola-se no pão e no queijo de Manuel, e mais ainda no vinho duma borracha espanhola. Todo o segredo está em acertar com o esguicho nos lábios, não é qualquer um que o faz à primeira. Quanto ao resto, nunca houve colheita melhor.
Manuel vende cabritos, quando os há, e do leite que sobra das mamadas faz a mulher uns queijos. O resto pouco é, e lá vai para a fábrica, misturado com o das duas vacas que lá tem. Agora a mulher teve uma trombose, o queijo vai-se acabar, e Manuel não tem outro remédio senão vender as cabras a alguém que as ature. Mão singela pouco alcança, como é sabido, e um rebanho, mesmo pequeno, é coisa muito cativa. Talvez arranje outra vaca, mais pelo subsídio do que por outra coisa, que o preço do leite não vale nem um chavelho.
- Anda um homem para aqui como os parvos...
Estes relatos de vidas precárias deixam sempre o viajante apoquentado e sem palavras. Põe-se a observar umas melancias redondas, que andam espalhadas pelo campo em grande quantidade. Num chão tão seco e desgarrado, só podem ser frutos da terra santa, parecem um milagre.
- São botelhas francesas! Passa-lhe um homem um cilindro da estrada por cima e não dá conta delas! Lá em casa rebento-as à machadada, só assim as vacas lhe metem o dente!
O viajante traz à conversa a fumarada que tomou conta do céu, e Manuel cabreiro não perde o seu tempo em considerações.
- Era só prender os culpados no meio do fogo e deixá-los a esturricar. Havíamos de ver se isto acabava ou não.
Acaba, não acaba, o viajante não tem tanta certeza. E menos ainda parecem ter as cabras, que já se interrogam, num desassossego. Manuel cabreiro põe-nas a caminho de casa, que este sol é malsão, maré de lhes secar os tetos. Também já não há quem faça o queijo, pensa o viajante, mas guarda o pensamento. Fica sozinho no meio da serra agreste, e uma tão desamparada solidão só podia chamar-se Vale dos Lobos. O viajante reconhece ao longe o teso dos Moragos, onde Manuel disse que vão instalar uns moinhos de vento, alveja além o depósito das águas municipais, na Cabeça do Lagar. Em tempos haveria por aqui invernos frios, e pinhais, e nevões prolongados, não admira que os lobos saíssem aos caminhos, se era este o vale deles. Agora o viajante passeia o olhar pelas vertentes ermas que descem para a Castanheira, que é para onde as cabras vão, e lava as vistas no lençol da barragem da Teja, estendido ali aos pés do castro de Casteição. Desde os cabeços da quinta do Rovisco, e do Outeiro Furado, passando por todo o altiplano das Terras Grandes, até chegar às colinas da quinta do Forcas, já às portas de Trancoso, todo o horizonte ao alcance da vista é um páramo de matos e ervedos ressequidos. Nalgum tempo era esta paisagem uma vastidão de matas e campos de cultivo, os mais deles em sortes baldias que a junta arrematava, como disse o cabreiro. As colheitas eram magras como os solos, mas amenizavam o mundo e faziam parte da vida dos bichos e das gentes. Assim deixada a paisagem ao abandono, e dizimada pelos fogos, ficou esta imagem dum deserto, pontuada de esqueletos de troncos calcinados, um reino de penedias de aspereza selvagem, onde não resta uma árvore e só lagartos condenados habitam.
O viajante, que não vinha à procura do paraíso, sabe muito bem que estas terras não vêm nos mapas do mundo e já o disse. São em demasia agrestes e frugais, são sáfaras e madrastas. Mas grande parte do país é igual, e no pouco vê-se o muito. Ora este pouco é, para o viajante, mais do que suficiente. Passadas décadas de emigração para a Europa, e de fundos que da Europa vieram, nem cem anos de projectos a fundo perdido darão vida a esta solidão, nem salvarão este abandono.
(...)