No dia 10 de Junho de 1977 Jorge de Sena foi convidado para fazer, numa escola secundária da Guarda, o discurso de celebração das comunidades portuguesas.
Foi um discurso notável, com variados ecos na cidade. Mas caiu no mais absoluto silêncio para lá do termo dela.
E como não?! Se nunca se ouviu falar deste Camões e deste Portugal aos catedráticos dele!
"É para mim uma honra insigne ter sido oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões e ao dedicar-se o Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla qualidade de estudioso de Camões e de residente no estrangeiro.
Com efeito, em 1978 cumprem-se 30 anos sobre a primeira vez que em público me ocupei de Camões, iniciando o que tem sido um contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno, que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência. Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor e feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal. (...)
Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua, que é uma das seis grandes línguas do mundo, e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu, ele é uma pedra de toque para portugueses, porque tentar vê-lo como ele foi, e não como as pessoas querem que ele seja, é um escândalo. (...)
Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa identificar - aqueles emigrantes que eu tenho visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho percorrido, e que com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte os embaixadores que Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta. (...)
Seja o que seja continuo a ser o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959 (...).Democrata como sou, não falo em nome de ninguém sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém. Esse vício centralista da nossa tradição administrativa - um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas - deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta sob a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. (...)"