domingo, 27 de maio de 2012

Litania

Há neste mesquinho instante
da noite madre que cresce
mil fogos que ardem votivos
a uma estrela que aparece
mil flautas de Pã tangidas
ao deus que no mar fenece
mil versos soltos no vento
e o sonho não esmorece
mil heróis gregos num palco
já a plateia estremece
mil bares de fumo espesso
e a solidão permanece
mil zaragatas de rua
em que nada se esclarece
mil cabalas engendradas
e que mais ninguém conhece
mil coronéis na reserva
que vão almoçar à messe
mil consciências caladas
à espera duma benesse
mil muralhas construídas
para o que desse e viesse
mil charlatães já ouvidos
sem que nada se dissesse
mil espantalhos erguidos
p'ra que um pardal se temesse
mil heróis sacramentados
sem que metade o merecesse
mil cardeais condenados
sem papa que lhes valesse
mil desejos saturados
e um só que nunca esmorece
mil copos esvaziados
para que a sede cedesse
mil galanteios rendidos
a um peito que desfalece
mil promessas segredadas
ai que a virtude amolece
mil magias negras feitas
para que a outra morresse
mil gaivotas numa duna
a ver se o dia amanhece
mil sentenças já lavradas
sem que um réu se arrependesse
mil sonhos que se esfumaram
e um coração que entristece
mil juras mais mil promessas
de amor que logo se esquece
mil rogos a São Gonçalo
não há melhor seja a esse
mil rostos tão bem pintados
e nenhum rejuvenesce
mil amantes encontrados
ai quem sempre se tivesse
mil cobiças mil miradas
à fruta que amadurece
mil camas já devastadas
e a paixão não arrefece
mil suspiros mil olhares
para que um amor comece
mil quartos de mal-casados
ai de quem só se padece
mil saltimbancos famintos
e um corcunda que escarnece
mil sacrifícios sofridos
e que ninguém reconhece
mil esperanças logradas
e este olhar empalidece
mil homens mortos na guerra
sem que um vencedor houvesse
mil vidas vãs terminadas
sem que a vida se vivesse
mil bocas mortas de fome
nenhum céu se compadece
mil abutres que volteiam
enquanto um corpo apodrece
mil perdidos naufragados
sem salvação que se apresse
mil gritos soltos na treva
sem que a treva se rompesse
mil velhos a apanhar sol
num alpendre que entardece
mil vazios numa vida
não há quem os preenchesse
mil barcos fora de porto
e nenhum porto aparece
mil ovelhas num redil
ai que uma só se perdesse
mil mãos caídas geladas
sem que uma  fogueira ardesse
mil deuses mortos na areia
não há quem solte uma prece
mil cantigas de embalar
e um menino que adormece
mil regatinhos no monte
e o monte que reverdece
mil enxadas enterradas
para que o trigo crescesse
mil mãos fincadas nas grades
sem que uma grade cedesse
mil orações murmuradas
para que um filho regresse
mil mós loucas num moinho
ai quem deste pão comesse
mil injustiças caladas
e gente que as não merece
mil comboios ascendentes
mas há um fatal que desce
mil vontades encontradas
e a tirania falece
mil rainhas destronadas
e uma só que resplandece
mil primaveras vividas
e um cabelo que embranquece
mil anos já são passados
e um velho não envelhece
mil montanhas levantadas
ai quem passá-las pudesse
mil caminhos encruzados
mil teias que a vida tece
mil batalhas já travadas
ai esta quem a vencesse
mil duvidosas cartadas
a melhor quem a soubesse