segunda-feira, 20 de julho de 2009

Portugalmente (39)

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O viajante guarda estes pensamentos e põe-se a descer a rua, onde a vida, outra vez caprichosa, mistura o bom ao pior sem mais explicações. Cercado de pardieiros encontra o viajante um solar seiscentista, que foi duns vagos condes de Leiria, honraria liberal dum rei assassinado. E alguns artistas, montados nuns andaimes, andam atarefados a compor-lhe a fachada. Já lavaram a pátina ao brasão, e querem transformá-lo numa unidade de turismo rural.
O casarão está ali desde os começos do séc. XVII, e há muitos anos já viveram nele os capitães-mores do castelo de Moreira. Uma capela da Senhora da Guia, engastada no solar, foi tulha de cereais durante muito tempo, adianta um dos artistas, mais faceto. Mas bem remido estará o sacrilégio, que a um lado se garantia assim a frescura do grão, e a outro se mantinha em respeito a ousada rataria.
Animado com tão frescas louçanias, chega o viajante ao largo dos condes de Avillez, conforme diz uma placa. Ou então à aldeia nova, no linguajar do povo. A toponímia antiga não costuma enganar, mas aqui não acerta o viajante como há-de fiar-se nela. O solar dos condes avulta logo ali, ao cruzar do ribeiro, e é construção severa, ao modo antigo. Não fora tão longe o mar, e o viajante acredita que já lhe sobra idade para ter acompanhado as despedidas do Gama, vai lá uma eternidade.
A gente moderna olha para estas coisas, vai dizer que tiveram toda a vida a cara que hoje mostram, e não é bem assim. Pois já quando partiu a pelejar em Ceuta, aos anos que isso foi, era o fidalgo João de Castro segundo conde em Monsanto e dono deste casal, que mais tarde vendeu. Nesse tempo era coisa discreta, uma quinta singela à beira deste ribeiro, uns domínios de cultivo. Seguiu-se uma dinastia de morgados, que cem anos depois construíram a capela. E só o rei magnânimo, duzentos anos mais tarde, mandou passar brasão de armas e outorgar ao senhorio fidalguia de solar. Que a história tem precedências e patentes, tem cortesias e diuturnidades. Viveram aqui viscondes, renovou-se a frontaria, construiu-se o escadório segundo os ares do tempo. E donde já partira um padre jesuíta, que andou lá pela China a levar a boa nova, mais fácil saiu daqui um coronel miguelista e um juiz que foi bravo do Mindelo. Só depois, por casamento, chegaram os condes de Avillez.
Ora a aldeia é mais velha que o solar, mais velha que a velha quinta, pois nada se fez no mundo sem haver povo a tocá-lo, como é geralmente sabido. Não pode agora informar o viajante qual o núcleo original do povoado. Mas só quando este solar se construiu é que a aldeia se foi aproximando. Nasceu então uma aldeia nova, a acrescentar à irmã. E a toponímia antiga voltou a ter razão.
Esta capela da Senhora da Trindade, com uma pirâmide em pedra a enformar um telhado que remata em chapéu cardinalício, data de 1547, se a era bater certa. E a parte fundeira do solar, a mais virada ao sol e à paisagem, juntamente com a azenha de água que lhe fica encostada, estão a ser engolidas pela vegetação. Fica a escadaria monumental, que dá acesso ao salão nobre onde era a sala do Preto, e a já falada capela da Trindade, a resistir ao tempo.
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