quinta-feira, 23 de julho de 2009

Enxurrada

Quando António Guterres tomou posse do seu primeiro governo, em 95, não perdeu tempo até ao erro primeiro: suspender a barragem do Côa, por causa das gravuras. Não é verdade que até havia uns grupos de adolescentes, genuínos porta-vozes da opinião popular, a arrastar as multidões e a defender a cultura, e a protestar que os auroques não sabiam nadar?
A EDP recebeu 20 milhões, daqueles dos antigos, e os cavalinhos ficaram muito contentes. Mas a febre da cultura, e mais ainda as bebedeiras dela, não ficaram por aí. É que havia umas gravuras a jusante da obra, há muito tempo afogadas abaixo da linha de água. Urgia uma operação de salvamento.
Foi assim que veio a ideia de fazer, a jusante, a ensecadeira. Rebaixava-se em dez metros o nível das águas e já podiam respirar os cavalinhos, já podiam respirar os visionários. E até o povo eleito atravessava outra vez o mar vermelho.
Mas tudo isso custava muito dinheiro, e houve alguém que se viu mal no retrato. Os cantores adolescentes já tinham novas cantigas, e a ensecadeira nunca saiu do papel.
O vale do Côa lá ficou escalavrado. A EDP ficou à espera que lhe caísse nas mãos o comboio do Tua. E a cultura nacional passou a mão pela barriga, e suspirou satisfeita.
No ano que passou, catorze mil visitantes foram ver as gravuras rupestres. E os cicerones de apoio passaram a operar a meio tempo.
O museu do Côa pensaram-no para a falésia, mas a verdade é que não cabia lá.
Foram fazê-lo ali no cimo dum cabeço, a mirar ao fundo o rio Douro. Quando calhar vai ser inaugurado.
Estou em pulgas por saber o que é que a inteligência das elites, afogada nos caldos desta cultura, vai incensar ali dentro. Bom era rebanhar lá os auroques, e retomar a barragem. Aquilo que tem que ser tem muita força, e os indígenas locais não esperam outra coisa. Mas o comboio do Tua é que já foi na enxurrada.