quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Portugalmente (19)

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Do Reboleiro a Palhais vai um passo mal medido, a bem dizer são terras ligadas por um cordão de casas que mal despegam, ao longo da estrada. O viajante segue devagar no seu carro já velho, fiel companheiro de vinte e cinco anos, uma peça de museu que já se não fabrica, e por quem o seu dono tem elevada consideração. Segue devagar e vai olhando o limpo céu da manhã, e olhando vê, e enquanto vê repara, cumprindo a advertência dum mestre inesquecível. Mais lhe valera não ver, ou vendo não reparar, que as artes da construção, ali atrás faladas, subiram aqui aos cumes do espavento e do delírio. Por isso o viajante afasta-se dos conselhos do seu mestre, e espraia o olhar para os longes do vale, que se alarga entretanto, à medida que vai chegando ao fim.
A espaços sobrevivem amoreiras bravas, quem sabe se restos de plantações que por aqui se fizeram há duzentos anos, para alimentar os bichos-da-seda. Era isso a indústria e a riqueza, e era de admirar que o achado vingasse, por razões que se perderam, acabaram os bichos por morrer. Agora estão a ficar maduros os cereais e os fenos pelos campos, e os seus donos andam atarefados a meter-lhes a foice, que é como quem diz, a máquina ceifadora. Ali perto estão já as abas do monte do Almansor, sinal de que anda próximo o destino da ribeirinha, que é o rio Távora.
O viajante dá consigo no meio da aldeia e parou à beira da estrada, quer ver a igreja que está ali ao lado. É uma fábrica discreta, que não impressiona quem passa, mas o viajante reparou nela, e por ela quer começar. A porta lateral está entreaberta, e por não ver ninguém a quem se dirigir, entra sem cerimónias. O interior é agradável e cuidado, e surpreende nele o aconchego das madeiras, nos pavimentos, no guarda-vento ao fundo. Bem diferente da frieza mística da pedra. O viajante tem mesmo direito a passadeira vermelha, quando se aproxima do altar-mor.
Ao fundo, na cabeceira, devia estar um retábulo, e as costumeiras colunas, e as folhagens de acanto, e pombas e pelicanos, e anjos rosados carregando nuvens às costas. No seu lugar encontra o viajante este vazio na parede, a mancha da pedra tosca, as juntas sem remate. Assim apanhado de surpresa, logo imagina o pior. Mas há-de ficar mais tranquilo, quando souber que tudo foi a restaurar, numa oficina de Braga.
Ali à esquerda está aberta a porta da sacristia. E ao entrar dá o viajante consigo no meio dum comício de santos, aqui reunidos para ouvirem o que tem a dizer uma Nossa Senhora da Ribeira, que preside além, pintada num retábulo. Até o São Sebastião perdeu as farpas. Aos outros, que são muitos e de várias idades, não perguntou o viajante a graça, mas fica a saber melhor os pontos a que chegou o desconchavo deste mundo. Está aqui uma boa dúzia de supranumerários, que a modernização da igreja dispensou. Por isso se juntaram em cima dos armários, alinhados alguns neste banco corrido, no meio dos tocheiros, dos ex-votos, dos solitários vazios. Menos mal que têm ar condicionado, embora esteja desligado. Se este viajante fosse dado a cultos de imagens, e tivesse lá em casa um oratório, bem podia sair daqui com algumas debaixo da casaca, ninguém dava por ela.
A aldeia pouco mudou, e os emigrantes que a ela trouxeram as suas casas novas foram-se a construí-las lá fora, ao longo da estrada. Não é que não houvesse espaço em derredor, aqui mais perto, o ponto estava em tê-lo disponível, e a preço adequado. E agora entende melhor o viajante a palavra da brasileira, ali atrás falada, que na sua terra foi sempre o ambiente mais dado que noutras, mais popular. Menos marcado por distinções de classe, diria o viajante, se fosse a utilizar palavras suas. Quem ganhou foi a sua aldeia, como já ficou visto, e esta aqui é que perdeu, conforme se está vendo. Ficou a Casa Grande, onde não passa uma aragem de vida, e esta capela oitocentista, encostada a um alpendre acanhado, que está à venda. O resto é igual ao que já era, salvo reconstruções de fraco gosto e pior qualidade. As ruas estão ali, calcetadas e limpas como o viajante já se habituou a ver, com as ervas a crescer nelas por tão pouco haver quem as passeie. Em redor jazem largos quintais ao abandono, cobertos de capim que os devora à torreira do sol, vê-se mesmo que têm saudades dum gesto de mão, e dum fio de água de rega. Mas os donos vivem longe, e nem se lembram deles.
Não faltarão por aqui festas e casamentos, quando Agosto chegar. Então os carros hão-de ser tantos que não caberão nas ruas todas da aldeia, e hão-de ocupar as bermas da estrada inteira. Nessa altura o largo encher-se-á de modos peregrinos, e de gravatas incómodas e graves, hão-de passear nele muitos vestidos novos com cortesias de cetim, a gritar às crianças doestos em falares estranhos. Sobrará vida durante um mês. Porém agora não se avista vivalma, talvez por causa da hora e dos trabalhos do campo. Embora o calor já seja muito, há zumbidos de máquinas distantes no céu da manhã, onde crescem castelos de nuvens.
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