sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ecos da Sonora - XXXVI

(…) Aonde me levam? Pés gelados no chão viscoso. Labareda de archotes. Escuridão e luz. Bailam duendes as sombras pelas paredes. Saudades do conforto da minha casa. Vizinha jovem, corpo afeiçoado. Volúpias. Pecado no pensamento e na polpa dos meus dedos. Mesa farta, escolhida, iguarias… Que gritos, que uivos são aqueles? A casa das torturas. Uma galeria corria por cima. Dali se podia ver sem ser visto. Aí parámos. Meus olhos, meus ouvidos, minha alma para sempre maculados. A fera humana. Único animal que põe a imaginação ao serviço do mal. Invenções diabólicas. No potro, deitado, in eculeum coniectus, tortura antiga, um paciente despojado das roupas. Apenas uma tanga lhe esconde as vergonhas que o são desde que Eva e Adão… Grossas cordas em argola lhe atam os tornozelos, as coxas, pulsos e braços, ligados a tornos que os algozes vão torcendo a mando do inquisidor sentado em seu estrado diante duma mesinha, notário ao lado, protecção do crucifixo.
- Confessa.
- Ui, meu pai!... Nada tenho que confessar.
Aceno aos algozes. Mais um esperto nos torniquetes. Começam a alrgar-se as tábuas do cavalete, a estender-se e, com elas, se vão desconjuntado os ossos daquele corpo, esticando a espinha, deslocando do encaixe dos ombros os braços, da bacia as pernas…
- Ai, ai, ai, eu morro!...
- Confessa.
- Parai. Eu confesso, padre.
- Diz.
- Até agora – arfava esgares – eu acreditava…
- Ah!
- … mas agora sei… vejo… ele não existe…
- Que dizes, desgraçado?
- … Deus não existe… que te não vem fulminar, cão… não vem castigar tanta maldade…
Aceno e mais aceno. O esqueleto desune-se. O paciente desmaia. Um dos algozes escuta-lhe o coração:
- Está morto.
Sangra-me a alma. A meu lado um companheiro desfalece e derrama-se no chão.
Adiante arrastam-nos mais gritos a outra cena. Cravada na abóbada uma roldana de que pende uma corda, de que pende um desgraçado pelas mãos atadas atrás das costas. Vem a corda a um eixo seguro em dois madeiros. A manivela solta o peso humano, o corpo cai de esticão quase até ao solo, ossos partidos, rompidas as carnes, os braços desmembrados… A um canto queimam as solas dos pés com ferro em brasa a outro infeliz, espetam-lhe farpas de pau no sabugo das unhas. Como estátua, sentado imóvel, encostado ao tronco do garrote, aquele parece dormir ou rezar, a cruz entre as mãos pousadas no regaço, há muito a dor extrema lhe calou os gritos…
Desânimo e medo. Eis como me tornei a meu cárcere. (…)


A voz é de Damião de Góis. Uma ficção, claro, de Fernando Campos, A Sala das Perguntas.
Os gestos são dos facínoras de então, encarregados da destruição moral do povo, para salvar as almas simples e assegurar a perpetuação do mando.
Modernamente mudaram as tácticas artilheiras, o objectivo é o mesmo.
E o que sobrou, ao fim de trezentos anos, ainda hoje está à vista.