segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Pegos floridos

E só voltou a encontrá-la muitos anos mais tarde, acabado de regressar a Vale do Açor, depois de consumir, num estanco de barbeiro carioca, os seus melhores trinta anos. Tinha ido espairecer a alma solitária ao Senhor da Pedra, ali abaixo de Moreira de Rei, talvez conheça. Naquele tempo era a romaria mais popular da redondeza, não havia cão nem gato que não aproveitasse o sol novo da Páscoa para dar um prazer ao corpo, escarmentado pelas rudezas do inverno. Ele havia merendas colectivas pelos outeiros, qualquer um mais descarado podia associar-se, havia bailes de concertina nos largos e terreiros, e sociedades de pândegos que se armavam, tarde fora, à volta duma cartola de palheto, plantada ali sobre dois cavaletes.
Antes, porém, havia a missa e o sermão, em que o povo era chamado a capítulo. Nesse tempo era assim, e mal visto ficava o pregador que não deixasse a fungar meia capela. Depois a procissão descia ao vale e voltava a subir a encosta, era aquilo uma serpente colorida a espreguiçar-se por rodeiras e canadas, lenta e compassada, não fosse algum santo sofrer um tropeção e cair do andor.
Contou-me depois que ficara, solitário, à sombra dum carvalho sobranceiro ao adro da capela, sem devoção bastante para tão rudes andanças, a ver recolher a procissão, quando a viu a passar. E disse-me que sentira, neste passo, o coração a saltar-lhe do peito, a querer impor-lhe, embora mal parecesse, a pergunta derradeira, uma última fala com ela.
É que lhe ficara sem resposta o mistério fatal, um enigma cerrado, desde o dia funesto em que descera a correr a ladeira sem fim da Sobreposta, caminho do moinho, onde passou a tarde a ajudá-la na horta. Ia bem, o namoro, a um lado concordavam os pais, a outro tinha ela um riso transparente que endoidava a cabeça, e uns olhos de água que assim devia ser o mar, e um jeito manso de mãos que fazia bulir o peito, só de vê-lo. E foi ao morrer da tarde que ele deixou cair a pergunta, quando é que haverei de cá tornar, a ver-te. E ela, feiticeira, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e quando os moirões estiverem caídos, e quando os mortos forem enterrando os vivos, então cá tornarás. Isto disse e recolheu a casa, que a mãe a reclamava.
Voltou ele a subir a ladeira sem fim da Sobreposta, e chegou a casa já de noite. A cabeça em desconcerto largava perguntas às estrelas, quando estarão os pegos já floridos, e onde os tais moirões caídos, e que mortos a enterrar que vivos. Mas se do céu caiu algum sinal não pôde ele entendê-lo, nunca mais encontrou a hora de voltar.
Quando a viu ao recolher da procissão, gastou um ror de tempo a vencer embaraços, a reconhecer-lhe ao longe a silhueta já pacificada, a estudar-lhe nos modos algum jeito dos antigos sinais, até que se tornou azada a ocasião. Vinha ela a sair o portal da capela, no meio doutras devotas, e logo ele apareceu à mão esquerda, abrindo caminho no adjunto, como quem vai apenas a passar. Entre a hesitação e a surpresa, os olhos negros dela pareceram-lhe cansados, por um momento pareceram-lhe aflitos, pareceram-lhe perdidos. Alguns cabelos, que o lenço deixava a descoberto, não tinham já a antiga luz da seda. E o peito, debaixo da blusa de ramagens, tinha agora uma vastidão inesperada, mas guardava a placidez benigna das imagens doutro tempo.
Uma ira zangada veio em breve a toldar-lhe o semblante, desapareceres assim, nunca mais lá tornares, acabei por casar e fui viver para Sequeiros, hoje encontro-me viúva, tenho filhos por aí, homens já feitos, nunca mais lá tornaste, e os olhos a fugirem, perturbados. E as mãos dele a afoitarem-se para ela, nunca resolvi o teu mistério nem atinei com a hora de voltar, ainda hoje a não sei, tornarás quando os pegos já estiverem floridos, e aqui me hás-de dizer que hora era a tua.
E ela, ainda bonitona, na face uma rosa a abrir. Florescem os pegos todos, à hora em que neles dá o lume das estrelas. Caídos estão os moirões quando os pais já não vigilam. E os mortos enterram os vivos, quando só restarem cinzas num fogo que se apagou. Toda a noite esperei por ti, só a alta madrugada me venceu.
Havia noutro tempo destinos assim, talvez já tenha visto. Bem piores até que o destes dois. Que lá foram, disputando, por entre a multidão, parecia haverem florido todos os pegos do mundo.

da capo - 12

SOBREVIVÊNCIAS
Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. E obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.
Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos, num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.
Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo duma ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, e no fim um abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus.
Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos nas orelhas, a alancear-nos o peito.
A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjo da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajudas, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controlo. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, gritaram que o médico viesse. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.
Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme de ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.
Lentamente foi amainando o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os serviços do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América, a gente sabe lá!

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Arte e imitação

Gastei anos e anos em escolas, em universidades técnicas, a esgrimir contra fórmulas, a dissecar impedâncias, a sondar estados de alma em micro-chips. Tive uma bolsa na América, pós-graduei-me em sistemas, fui mestre em micro-correntes. E acabei autoridade na selva oscura da robótica.
Quando ousei aventurar-me no mercado, rejeitou-me o tecido empresarial por ter currículo a mais. E após várias peripécias acabei a retrair-me em casa, assustado com um país que me odiava a ciência, pensava eu.
Volvidos anos em negra depressão, constou-me um dia que toda a arte estava na iniciativa própria, na ousadia privada. E concluí que, assim sendo, o caminho era a arte.
Eu tinha construído, no desarranjo do quarto, meia dúzia de autómatos que jogavam à bola. Para me distrair. Fiz umas adaptações e deixei-os vaguear sobre uma tela. Um deles reproduzia na perfeição os tiques do urso enjaulado. Outro era mestre nos pânicos do polvo acossado, a disparar borrões negros. O mais sofisticado simulava orgasmos de coelho, e rematava a obra com o toque final do mestre.
Muito em breve não me saíam da porta as galerias, ninguém calava os mecenas, nem os conselhos de administração sedentos de arte não figurativa. Os meus robôs dilataram horários, organizaram-se em turnos, e nos picos da estação mourejavam em simultâneo, vinte e quatro horas porque o relógio mais não tinha.
Uma noite preparei-lhes o terreno, mergulhei o estúdio em luz febril, liguei-os no automático e fui-me à cama, tomado de stress. Na manhã seguinte achei estendido no chão um retrato da Mona Lisa, carregado de mistérios.
Antes que eu visse uma dinheirama a arder, fui-me logo aos robôs e arranquei-lhes as tripas. Era o que mais faltava, após tantas conquistas da modernidade, voltarmos agora à arte como imitação da natureza!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

À manhã, que chegou outoniça ...

... a luz divina de Sorolla!

domingo, 21 de setembro de 2008

da capo - 11

O SULTÃO
A donzela, digo eu, terá os seus quinze anos. Vai sentada ao lado da janela, enquanto masca a chicla ruidosa, num estalar de beiços. Sujeita-lhe a gaforina um par de óculos espelhados, de tartaruga pintada.
Ele vai sentado ao lado, um pé no banco da frente. Vai tão indiferente ao mundo, tão alheio à companhia, faz-me lembrar um sultão.
Os olhares da donzela vão na rua, mas volta e meia cai numa agitação. Debruça-se para ele, varre-lhe na face a linguita rosada, arrasta-lhe nos lábios um beicinho. Passa-lhe o dedo na cana do nariz, morde-lhe o lóbulo frio, dá-lhe dentadinhas a fingir. E afunda-lhe a língua no fosso auricular que lhe está mais à mão.
Ele queda-se impassível, desdenhoso, e eu fico extasiado a seguir-lhes os maneios. Se não sei muito bem em que mundo me encontro, menos ainda sei de que mundo eles vêm. Ela faz-me lembrar escravas dos haréns. E ele um califa de costumes modernos, que veio à rua arejar a favorita.
À saída não fico mais tranquilo. Ele passou adiante, imperturbável. Porém as calças dela, que são de gancho curto, deixam-lhe a descoberto os balões das cadeiras, a explodir obesidade. Ela enfeitiça-me os olhos com os mistérios do umbigo, antes de me estoirar nas fuças o balãozito da chuinga.
Segue ele à frente, ela atrás, para contentar o profeta. Eu aproveito-lhe o contentamento, e desço de novo à terra.

sábado, 20 de setembro de 2008

Pastiche IV

Entre o não-ser e o ser vai um enigma.
Se um deus intervier, dois haverá.
Sê tu, sem mais perguntas ao silêncio.

da capo - 10

PAÍS SEM SOSSEGO
Três quartos de Portugal não existem há muito. Criaram-se à lei da natureza, serviram de lastro às caravelas, formigaram por tudo quanto é mundo, e fugiram a salto para a Europa a ver se matavam a fome.
Agora deram-lhes carta de alforria, como se a vida se fizesse por milagre. O orçamento é curto, a justiça ressona atrás das togas, a educação multiplica iletrados, e já nem a saúde faz fortunas.
Um Portugal assim não tem sossego. Ou volta ao nada que já foi, em proveito da casta, durante cinco séculos, ou encontra o portão do 5º Império, que uns visionários lhe dão por garantido.