E também não chegou a ver, tinha passado um ano, o contorno disforme da sua própria fachada, quando uma equipa de enfermeiros o meteu numa ambulância que buzinou desesperada pelas ruas de Luanda, ia caindo a noite, até o despejar na urgência do hospital militar. Gaspar chegava num avião que vinha do norte, estendido numa maca rasteira, a cabeça embrulhada em ligaduras que eram uma pasta de sangue a pingar-lhe dos olhos retalhados e inúteis, e o corpo inerte, forçado a hibernar por doses de morfina.
Bastava uma chuvada para trazer a fome, num destacamento que partilhava com umas dezenas de companheiros perdidos no sertão, ao lado duma sanzala miserável. Uma pista de terra que as chuvas alagavam e onde ninguém arriscava aterrar, alguns barracões de madeira roídos da formiga, o paiol das munições e uma cozinha onde os ratos faziam criação, no mastro risível do terreiro içavam às vezes a bandeira da soberania. Comeram os mangos bravos da velha picada abandonada, perderam-se em bandos no capim, de arma aperrada, sem avistarem um só dos burros do mato que deambulavam na paisagem, sem poderem despejar-lhe no bucho um carregador inteiro, a fome continuava e um dia Gaspar montou num velho avião e foi à caça.
O bicho estava no visor, partido em quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.
Gaspar viu também a morte que ali estava. Puxou o avião para o ar antes da viseira partida lhe ter rasgado os olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável. Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca chegará a perceber como saiu vivo daquilo. (Cont.)