Vera razão, porém, quem a tinha eram os aviadores. Por terem feito os doutores o que sabiam e puderam fazer, não foi preciso despachar este para a metrópole nessa mesma noite, no avião da TAP, conforme estava decidido. Eram escassos os aviadores, no meio da geral penúria de armas e munições, da míngua geral de viaturas e aeronaves, da falta geral de materiais e de soldados, eram demasiado escassos os aviadores, jovens, esforçados, loucos, para calcorrear as amplidões da pátria e manter audívelna paisagem o estrondear do império, para distribuir os bate-estradas da tropa em pistas de terra que se dobravam a meio quando esbarravam na orla da mata, em pistas de terra que subiam tranquilas o declive da encosta se calhava tropeçarem numa colina, eram demasiado escassos os aviadores para arrancar à loucura geral os soldados que as emboscadas ainda não tinham dizimado, e que davam tiros nos pés que as minas ainda não tinham decepado, a ver se alcançavam lugar numa passarola pré-histórica onde não cabia a maca e o enfermeiro com o frasco de soro a pender-lhe da mão, mas que podia tirá-los dali se aterrasse sempre do mesmo lado e descolasse na direcção contrária, indiferente ao vento, indiferente à carga, para não rasgar a barriga de lona nas copas altas da floresta, que já crescia ali muitos séculos antes de haver estas manobras aéreas. Eram demasiado escassos os aviadores, e por isso há estas fardas importantes a passear no átrio das urgências, à espera duma ambulância que aí vem com um piloto acidentado, ainda por cima à hora do bridge no terraço, ainda por cima à hora do gin tónico e da brisa que sobe, fresca, da baía, e um tal zelo far-nos-ia pensar que vai chegar aí a rainha Ginga de charola, se ainda estivesse viva e se viesse curar duma crise de paludismo.
A TAP não espera, e por serem os aviadores demasiado escassos, é preciso decidir logo em cima da primeira observação médica. Razão, porém, quem a tinha eram os aviadores do norte. Os doutores lá puseram Gaspar a dormir um mês inteiro, e só depoiso manraram para Lisboa por não haver ali mais a fazer-lhe, não há nestes, como noutros casos, melhor do que deixar a vida seguir o seu natural curso, e vem a jeito lembrar a parábola do regatinho que da serra vai baixando, quem poderá impedi-lo de chegar ao mar. Credores seriam eles, de redobrada mesura e devoção, se a este pudessem os doutores ter juntado outro milagre, que era o de livrar Gaspar dos pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços, que vieram um dia e ainda hoje assim voltam, como este espelho está mostrando, e o deixam aterrado sempre, afogado no lago negro onde o vemos a esbracejar. (Cont.)