sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - X

Ainda mandei um e-mail a avisar o pentágono, a ver se desvendava o pedigree do bicho. É que eu tinha perfeita consciência do que podia acontecer, sabia muito bem que tipo de fera estava ali sobre a mesa. Vira-a em acção nos desertos da líbia e nos planaltos da balcânia, em noitadas febris diante da televisão, quando a guerra era uma aventura de joistique, à hora do jantar. Mas nunca imaginei uma tal hecatombe, subida às proporções que esta havia de atingir.
Tudo começou quando resolvi instalar-me na vasta secretária do pai, para trabalhar à vontade. E, ao fim de um dia de aturado labor, tinha à minha frente uma réplica perfeita do abutre sombrio, o mais-que-perfeito demolidor de paisagens, saído dos laboratórios da américa para domesticar o mundo. Foi ao vê-lo que julgo ter afinal compreendido o que sente o coração dum general americano. Pois aquele gerador de escombros, exibindo um arsenal assustador enquanto piscava luzes de aviso, infundia um pavor misterioso, pintado assim da cor da morte dos teatros de operações da tartária.
O pior foi à noite, quando o pai chegou. Esticou o pescoço incrédulo para os destroços da secretária, enquanto a gravata distraída ia varrendo colas e limalhas, restos de tinta e rebites de plástico. Quando viu em ruínas a seda italiana, perdeu a compostura de corrector da bolsa. E logo ergueu, furibunda, a mão direita, desenhando no ar um gesto de catástrofe.
Assim tão explicitamente ameaçada, não tardou a fera a reagir. Já o silvo agudo das turbinas invade a sala inteira, já o rotor vigoroso distribui pelo ar estaladas de raiva, já a poderosa força ascensional a coloca no ar em posição de tiro. Um míssil inteligente enquadrou o agressor, e ali mesmo o reduziu a pó, no meio da fumarada dos gases tóxicos.
Foi logo a seguir que se ouviu desabar com estrondo a esquadra de santa bárbara, quando o chefe encerrou o expediente da noite e apareceu fardado na rua. Depois foi o passadiço do mercado de arroios, que a fera confundiu com uma ponte estratégica. À saraivada das bombas de neutrões não escapou um único bombeiro, vinham a correr apagar os incêndios e morreram crispados nos bicos das agulhetas, no meio da babilónia da pascoal de melo. Mesmo a trupe dos arrebentas, à porta do bar de alterne, acabou às postas na calçada, oportunamente grelhada a laser. O abutre sombrio tomou-lhes as sombras musculadas por uma tropa qualquer da infantaria de marinha sérvia. E só parou por falta de combustível, quando o comando estratégico lhe respondeu com o silêncio aos apelos febris de reabastecimento em voo.
O pentágono acabou a pedir-me um relatório circunstanciado, e eu exigi à nato a reconstrução do bairro. Lá em casa cortaram-me, aos gritos, a ligação à internet, e o avô decretou o embargo total aos mercados da américa. Com toda a razão. Mete a gente em casa estes toiros corridos, sem fazer ideia das manhas que trazem na cabeça.
[ibidem]