quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Relíquia antiga - IX

A tia patrocínio viveu num tempo feliz, em que havia muitos pobres. Ela então deu-se ao luxo de escolher o seu, entre tanta oferta. Escolheu o asdrúbal, que tinha quarenta e cinco anos e aparentava setenta. Era reformado do mar, e um dia disse que deixara de embarcar porque já ninguém esperava por ele em porto nenhum.
Três vezes por semana, às dez da manhã, o asdrúbal subia ao segundo andar, pela escada de serviço. E tinha sempre a tia a recebê-lo. Mandava-lhe lavar as mãos na pia da cozinha e o asdrúbal não perdia tempo, por causa do cheiro da sopa que vinha do fogão. Quando era inverno, a tia patrocínio fazia questão em que ele tirasse o velho sobretudo amarrotado, queria ver se ele trazia alguma coisa por baixo, que lhe aquecesse o peito. Às vezes, depois do primeiro prato de sopa, dava-lhe uma camisola de lã, das antigas que por lá tinha. E o asdrúbal ficava agradecido, embora visse perfeitamente que eram camisolas de mulher.
Depois do terceiro prato de sopa, a tia patrocínio mandava a criada guardar no tacho de alumínio que o asdrúbal trazia os restos do jantar, dava-lhe duas moedas e recomendava sempre que não fosse gastá-las em vinho. O asdrúbal jurava que não, tropeçava num agradecimento atribulado, guardava o tacho de alumínio debaixo do braço, e dizia deus lhe pague senhora até depois de amanhã. A tia patrocínio juntava as mãos sob a écharpe, num recolhimento íntimo, via-se mesmo que o asdrúbal lhe estava abrindo as portas do céu.
Um dia veio a revolução, e o que valeu à tia patrocínio é que já tinha o céu aberto. Porque o asdrúbal deixou de aparecer lá em casa. O mundo tornou-se uma coisa incompreensível, a rua era todo o santo dia um frenesi de gente numa agitação desconhecida, e o asdrúbal passava por ali mas nem olhava. Eu sei estas coisas porque ele mas contou, alguns anos mais tarde, já a tia cá não estava. Explicou-me que nessa altura as pessoas se tinham tornado diferentes, que a vida se transformara num vendaval saudável. Não era verdade, claro, mas havia mesmo quem dissesse que a gente das fábricas esgotava aos domingos a lagosta toda do mercado. E ele não sabia explicar bem, mas não lhe dava jeito na alma passar por ali e subir à cozinha do segundo andar. Confessou-me que nesse tempo até ele esteve tentado a acreditar na vida outra vez. Mas depois a revolução acabou, e com o tempo as ruas foram ficando calmas e as pessoas caladas. Ele ficou outra vez sozinho, e um dia achou que o melhor era voltar à escada de serviço do segundo andar.
Desde então quem recebe o asdrúbal sou eu, quando ele arranja forças para subir a escada. Se eu tivesse uma revolução, dava-lha. Pudesse eu, e nada me custava dar-lhe um sindicato ou um lenine. Assim, sou eu quem ganha o céu, à custa dele.
[ibidem]