terça-feira, 19 de novembro de 2024

As Aves 3-10

Vera razão, porém, quem a tinha eram os aviadores. Por terem feito os doutores o que sabiam e puderam fazer, não foi preciso despachar este para a metrópole nessa mesma noite, no avião da TAP, conforme estava decidido. Eram escassos os aviadores, no meio da geral penúria de armas e munições, da míngua geral de viaturas e aeronaves, da falta geral de materiais e de soldados, eram demasiado escassos os aviadores, jovens, esforçados, loucos, para calcorrear as amplidões da pátria e manter audívelna paisagem o estrondear do império, para distribuir os bate-estradas da tropa em pistas de terra que se dobravam a meio quando esbarravam na orla da mata, em pistas de terra que subiam tranquilas o declive da encosta se calhava tropeçarem numa colina, eram demasiado escassos os aviadores para arrancar à loucura geral os soldados que as emboscadas ainda não tinham dizimado, e que davam tiros nos pés que as minas ainda não tinham decepado, a ver se alcançavam lugar numa passarola pré-histórica onde não cabia a maca e o enfermeiro com o frasco de soro a pender-lhe da mão, mas que podia tirá-los dali se aterrasse sempre do mesmo lado e descolasse na direcção contrária, indiferente ao vento, indiferente à carga, para não rasgar a barriga de lona nas copas altas da floresta, que já crescia ali muitos séculos antes de haver estas manobras aéreas. Eram demasiado escassos os aviadores, e por isso há estas fardas importantes a passear no átrio das urgências, à espera duma ambulância que aí vem com um piloto acidentado, ainda por cima à hora do bridge no terraço, ainda por cima à hora do gin tónico e da brisa que sobe, fresca, da baía, e um tal zelo far-nos-ia pensar que vai chegar aí a rainha Ginga de charola, se ainda estivesse viva e se viesse curar duma crise de paludismo.

A TAP não espera, e por serem os aviadores demasiado escassos, é preciso decidir logo em cima da primeira observação médica. Razão, porém, quem a tinha eram os aviadores do norte. Os doutores lá puseram Gaspar a dormir um mês inteiro, e só depoiso manraram para Lisboa por não haver ali mais a fazer-lhe, não há nestes, como noutros casos, melhor do que deixar a vida seguir o seu natural curso, e vem a jeito lembrar a parábola do regatinho que da serra vai baixando, quem poderá impedi-lo de chegar ao mar. Credores seriam eles, de redobrada mesura e devoção, se a este pudessem os doutores ter juntado outro milagre, que era o de livrar Gaspar dos pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços, que vieram um dia e ainda hoje assim voltam, como este espelho está mostrando, e o deixam aterrado sempre, afogado no lago negro onde o vemos a esbracejar. (Cont.)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

As Aves 3-9

Esperaram por ele em sobressalto os companheiros, que ao longe o tinham visto desaparecer atrás da colina redonda. Sabiam ao que andava, o suficiente para lhe entenderem as manobras, deram conta de como o zumbir do motor se evaporara da infinita paisagem, e aguardaram que voltasse a aparecer do outro lado do monte. Mas ele já não veio palo seu próprio pé, e ao fim de várias horas de busca tropeçaram nele a esgrimir contra o capim altíssimo, enterrado até às partes nas lodagens dum charco onde as pacaças tomavam banhos de frescura, a cabeça disforme alagada no sangue que lhe espirrava das pálpebras em chaga, cego e alucinado, em busca dum caminho improvável.

Velaram-no toda a tarde,num estranho silêncio dolorido, atentos ao murmúrio que às vezes o agitava, um de cada vez metendo-lhe na mão as mãos que ele não desistia de agarrar, o que será que segurava. O que viam por fora não lhes deixava campo de esperança, mal sabiam eles que Gaspar não tinha partido sequer um dedo mínimo, das convulsões que lhe tomavam o peito saíam apenas vómitos de sangue, mas os próprios olhos estavam intactos, outro era o lugar das mais fundas lesões, e esse não estava à mostra. Milagre era já ele estar ali estendido no chão da viatura, ninguém sai com vida dos destroços que assim encontraram espalhados no capim, à beira do paul.

Porém este saiu, e já recuperou a razão à entrada do hospital, estendido na maca baixa, e já ouve este padre capelão a lembrar-lhe que também Deus o tem por seu filho, e que deve estar pronto a acatar o seu intangível desígnio, somos só verdes vimes que um vento verga, feita seja a vossa vontade, a minha não. Gaspar vê claramente o significado desta aparição que o fragiliza, que assim franqueia brechas na sua íntima segurança, depois da euforia animal de se descobrir vivo. Inunda-o este amargo sabor a fraude, sente-se violado por dentro, vocifera contra generais e guerras e pátrias, a sua e as restantes, mais que nunca se aferra às palavras que corriam entre os aviadores, lá no norte, se chegarmos vivos ao hospital os doutores não nos deixam morrer, na verdade o que ali lhe valeu foi perder outra vez o sentido, foi ter baixado o pano, de novo congelado o tino e a razão. (Cont.)

sábado, 2 de novembro de 2024

As Aves 3-8

E também não chegou a ver, tinha passado um ano, o contorno disforme da sua própria fachada, quando uma equipa de enfermeiros o meteu numa ambulância que buzinou desesperada pelas ruas de Luanda, ia caindo a noite, até o despejar na urgência do hospital militar. Gaspar chegava num avião que vinha do norte, estendido numa maca rasteira, a cabeça embrulhada em ligaduras que eram uma pasta de sangue a pingar-lhe dos olhos retalhados e inúteis, e o corpo inerte, forçado a hibernar por doses de morfina.

Bastava uma chuvada para trazer a fome, num destacamento que partilhava com umas dezenas de companheiros perdidos no sertão, ao lado duma sanzala miserável. Uma pista de terra que as chuvas alagavam e onde ninguém arriscava aterrar, alguns barracões de madeira roídos da formiga, o paiol das munições e uma cozinha onde os ratos faziam criação, no mastro risível do terreiro içavam às vezes a bandeira da soberania. Comeram os mangos bravos da velha picada abandonada, perderam-se em bandos no capim, de arma aperrada, sem avistarem um só dos burros do mato que deambulavam na paisagem, sem poderem despejar-lhe no bucho um carregador inteiro, a fome continuava e um dia Gaspar montou num velho avião e foi à caça.

O bicho estava no visor, partido em quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.

Gaspar viu também a morte que ali estava. Puxou o avião para o ar antes da viseira partida lhe ter rasgado os olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável. Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca chegará a perceber como saiu vivo daquilo. (Cont.)

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As Aves 3-7

Foi gente igualzinha a esta que uma bela manhã do Congo acordou trinchada à catanada, como os porcos antigos das aldeias, pelo desespero de bandos de africanos, fartos das mentiras do branco, fartos das vilanias do branco, fartos da opressão do branco. Fingindo-se virgens ofendidas, os governantes de Lisboa puseram-se a gritar que estava em perigo o terreiro sagrado da desmoronada sé de Salvador do Congo, enquanto brancos e pretos se afogavam num abismo de pânico e de sangue, a que nenhum irá sobreviver. Cegos e surdos ao correr do mundo, os governantes de Lisboa puseram-se a embarcar à pressa batalhões para Angola, a ver se restauravam a soberania.

Assim caída no sertão, entre forças que mal conhece, a tropa acabará dilacerada entre um vento de ódio que cega, e o medo que entorpece. Ora a presença dum inimigo é o único antídoto contra o medo, toda a gente sabe isso. Mas aqui, em lugar de inimigo, tudo quanto existe é o areal movediço dum imenso embuste, onde qualquer um vai matar para não morrer. E, entre este que é soldado e aquele que se tornou num assassino, vai um passo mal medido. Despejaram-se bombas de napalm sobre multidões de negros atraídos aos largos das igrejas, e os bandos que vinham atacar os povoados, com zagaias e trabucos feitos à mão, eram recebidos à metralhadora, eram dizimados à granada. E os prisioneiros, quando levados ao interrogatório, acabavam assassinados à facada, com o sabre-baioneta a enterrar-se lentamente na carne, à procura de caminho para um órgão vital.

Desde cedo se tornou a tropa um motivo de desprezo dos brancos, culpada de todos os males. E os políticos dementes de Lisboa, que sacrificavam a interesses velados a vida de milhões de criaturas, cedo demais começaram a cantar a sua vitória, o que lhes ficou nas mãos não foi uma pátria restaurada, mas um cadáver a apodrecer. O Congo inteiro transformou-se em terra de ninguém, restaram as picadas que o capim havia de engolir, restaram os destroços das casas que as chuvas foram arrastando para o rio, restou este grito sufocado das plantações abandonadas, que o mato depressa reclamou. Erguidos na paisagem, cercados de trincheiras e toscas torres de vigia, ficaram apenas os barracões de madeira das guarnições de quadrícula, na esperança de que se mantivessem de pé enquanto a loucura durasse.

Gaspar não teve que viver esses tempos originais. Nas vazias amplidões do Congo,a única ez que Gaspar teve contactos directos com oinimigo naquela guerra foi através duma fotografia. Isto logo à chegada, andava ela por ali entre papéis, abandonada no tampo duma secretária onde se acumulavam planos e ordens de missão. A cara deformada e sem feições dum negro que caíra nas mãos da tropa mostrava um olhar que já não parecia de gente, por certo era o retrato dum cadáver, Gaspar nunca chegou a sabê-lo. (Cont.)

domingo, 20 de outubro de 2024

As Aves 3-6

O terror insano que alastrara no Congo, nos primeiros anos da guerra, foi maré tempestuosa que a exaustão do tempo apaziguara. As primeiras companhias de soldados saíam dos porões dos navios ao som do Angola é nossa, e eram recebidas por multidões de colonos tomados por um misto de pânico e delírio, acreditando uns que a vingança seria arrasadora e terminal, e outros que a pacificação estava ao alcance duns breves tiros de morteiro. De resto, a maioria da tropa era da mesma estirpe do colono africanista. Vinha das mesmas aldeias onde nada mudara há séculos, a abarrotar de gente que não tinha dois palmos de terra onde plantar uma couve e cair morta, das mesmas aldeias onde a vida era rudíssima, e onde o único futuro era a bem-aventurança mítica dos cartazes de propaganda da Lição de Salazar, a abarrotar de gente que já não sabia fazer outra coisa senão tirar o chapéu à casta de figurões que a bem da nação tinha o país por conta, para suprir as faltas do povo sempre hão-de bastar os carregamentos da caritas da América, que isto é gente de boa e desenfastiada boca, do queijo de plástico e do leite em pó das fábricas da América, distribuídos por um abade qualquer, louvado seja Deus que tão equilibrado e aprazível fez o mundo. Era gente que andara a fugir da miséria a vida toda, por onde mundo houvesse, pelos subúrbios da Europa ultimamente, por Índias e Brasis desde há séculos, pelas Áfricas quando lho permitiram, um dia desembarcou numa baía dos trópicos esta gente a quem disseram, tudo quanto a vista alcança é Portugal.

Ninguém entende bem como isso possa ser. Mas depressa todos se dão conta de que basta a cor da pele para definir uma condição no mundo, afinal sempre valeram a pena as canseiras do Vasco da Gama. Passámos a vida toda numa servidão insuperável, a desbarretar-nos à passagem de condes e doutores, e finalmente aqui nos deparamos com criaturas mais vilipendiadas do que nós, ainda mais oprimidas do que nós, muito mais desprezadas do que nós. Esquecer depressa o sofrimento antigo, enterrar fundo a humilhação dura do passado, é exercício vital se queremos assumir um papel no mundo. Pomos por isso uns óculos escuros no nariz e aprendemos a beber whisky com gelo, armados duma pasta cheia de ar e vento mas carregada de significados, enquanto vamos estalando na calça um cavalo marinho que nos há-de compor a figura e realçar o ar de mando. Roubamos na compra, na venda enganamos, são quentes as pretas e de fadário submisso, o administrador é mais que todos cúmplice e venal, o resto, que é muito, não é nada que um bom sipaio não faça com gosto, é só dar-lhe mão livre. E eis que do mais mesquinho súbdito tirámos um patrão, não foi para outra coisa que os impérios se fizeram. (Cont.)

sábado, 19 de outubro de 2024

As Aves 3-5

Mas a cara gelada deste espelho é que não tinha só o frio para lhe devolver. Diz-se que, em sonhando, se estende a lógica dos sonhos, mesmo de pesadelos não passando. Não é assim com Gaspar, ao menos neste caso, que, entre visões e espectros, o que está vendo ao espelho é a sua própria imagem devolvida. O retrato é quase de corpo inteiro e revela-nos um ventre transparente, onde o celofane tomou o lugar da pele opaca, como nos manequins das aulas de anatomia. Vêem-se claras as circunvoluçõesdas tripas ensanguentadas, o volume dos órgãos íntimos, estranho é não lhe causar isto repugnância, e se não for por se tratar dum sonho, será porque deste interior todos nós somos feitos. A cabeça tem de lado uma parede refeita, diremos restaurada, uma das têmporas é de baquelite castanha, entalhada no crânio. E assenta sobre um pescoço desproporcionado, exageradamente fino e alongado, a prolongar uma coluna também reconstruída, descarnada a espaços, as vértebras cervicais são polidas e brilhantes, apetece aflorar-lhes um dedo, parecem talhadas em chifre cinzento.

Gaspar deixa as mãos descer ao longo do corpo e não encontra as coxas, não encontra as pernas, se quiser mover-se não consegue mais do que arrastar-se sobre os braços, a si próprio faz lembrar a cena dum filme em que os soldados tinham vindo da guerra e estavam pendurados num tecto de hospital, suspensos duma rede como vasos de flores, como presuntos na cura, mergulhados em penumbra e silêncio.

A respiração ofegante e descompassada vai traindo a aflição que se apodera dele, e agora falamos deste real Gaspar que dorme, sai-lhe às vezes do peito um grito abafado, um roncor se diria, benesse caridosa era acordá-lo, já noutras ocasiões em que isto mesmo aconteceu o teríamos feito, assim pudéssemos nós usurpar poder e competências, ademais nos faltando, para tão bicudos casos, um patrono encartado de quem lançar mão, ele há um para a fome, outro para a peste, algum para a guerra, se não todos num só, aqui não édela que se trata, porém antes dos estragos que deixou.

São coisa já antiga, estas assombrações que assim chegam sem marcar visita, vêm do tempo em que Gaspar andou pelos sertões de Angola, chamado a defender a pátria. Havia nas vazias amplidões do Congo alguma coisa de fascinante e hipnótico, com elefantes solitários a passear o tédio por chanas sem limite, com vastos bandos de pernaltas brancas que lavavam todo o dia os pés nos charcos, e anafados crocodilos de pedra tomando eternamente o sol nas margens das lagoas. Um homem sentia-se minúsculo, esmagado por tamanha grandeza. E se era da vastidão sem fim dos horizontes que o feitiço provinha, se da aterradora força das florestas, ou das serras majestosas donderios se despenhavam, Gaspar não chegou a sabê-lo ao certo. A vida decorria num limbo de inconsciência e voluntarismo perigoso, como num jogo de roleta russa, e as energias da juventude aprisionada assim nos limites do arame farpado fervilhavam em circuito fechado, sem objectivos nem sentido claro. Os mais velhos refugiavam-se na família que traziam atrás, ancorados no cais de miúdos e privados interesses, alguns almejavam cruzes de guerra para enfeitar a carreira. Os outros faziam por sobreviver, morriam às vezes em acidentes vãos e desatinados, poucos se davam ao incómodo de formular perguntas a que ninguém queria responder. O mais importante era queimar o tempo, era queimar as forças, era queimar infindáveis horas de voo numa ilusão de utilidade, enquanto os dias tombavam um a um, como folhas de outono, riscados num calendário. (Cont.)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

As Aves 3-4

Invenção não é, porém, este bando de presos comuns que agora mesmo escancarou as grades da ala norte da prisão,blina e vem abrindo cela a cela a estes encarcerados. Têm nas unhas as chaves do armeiro e deixaram já livre o caminho até ao pátio interior, ecoam por estes muros difusos gritos das famílias que lá fora se anunciaram, enquanto vão retumbando os estampidos das armas automáticas, não há janelas para ver o que acontece mas cada um de nós o adivinha, e aos poucos nos vamos encontrando no corredor, ainda desconfiados deste livramento que por tão ínvios caminhos nos chega, ainda suspeitosos, perguntando a quem no-las oferece, de que nos servem as chaves que armas devem cerrar e não abrir, quando um velho, de autorizado aspecto, se dá conta da cilada que ali está sendo urdida, se nos apanham lá fora, pior de armas na mão, somos todos ceifados, recolher à cela, camaradas, recolher à cela.

Quem se vai recolher, mas não à cela, é Gaspar, mais a restante embaixada. Assim sem darmos conta chegámos a Palência, onde tínhamos parada prometida, as horas são já mortas, maneira de dizer que a cidade está dormindo. Cruzou a pequena viatura por essas ruas, a esta hora livres de constrangimentos de trânsito, como se buscasse pelo faro esta praceta onde nos apeámos. Ninguém disse palavra, muito natural em se tratando de escolher pousada em terra estranha, concluamos não ser hoje a primeira vez que este carro aqui vem parar, ali está o hostal chocolate esperando por nós há uma vida, um pequeno letreiro verde a piscar na algidez da neblina.

Um recepcionista ensonado entregou as chaves aos hóspedes que em silêncio vão já subindo a escada circular, tudo decorre sem hesitações, como se tudo estivesse previsto, e Gaspar vai correndo os dedos no macio corrimão enquanto sobe ao primeiro andar, nunca a palavra se ajustou assim fisicamente ao gesto, como esta mão aflorando a madeira, se a causa não for o peso da minúscula mala, sê-lo-á o cansaço da noite, que é já longa. Cada um fechou a porta atrás de si, e terá sido o peso das pálpebras a impedir-nos de atentar no jovem par que já desapareceu, se afinal é um casal a sério, se dormirão juntos os dois, esta era a oportunidade de o saber, que assim desperdiçámos.

Gaspar relanceou a vista ao ambiente, como que faz um reconhecimento, notou o vasto espelho sobre o toucador a devolver-lhe uma sugestão nua de frio, ninguém estranhará as prevenções dos olhos que assim buscam na paisagem adversa as cores preferidas, e o olfacto os aromas, afinal é este o refúgio em que vamos baixar a guarda e nos renderemos ao descanso. Não são estes por demais singulares, nem aromas nem cores, o cansaço fez o resto, ao enrolar-se nos lençóis parecia que Gaspar se enrolava no sono. E ainda bem, porque Gaspar não deseja pensar. Viu partir do cais esta nau em que tomou lugar, vem assitindo do convés ao soltar lento das amarras, abre-se-lhe em frente um grande mar que desconhece, e não pode adivinhar os caprichos da rota que o espera. Foi-lhe dito que a ausência será longa e imprevisível o evoluir das coisas, bem poderá contar com dez anos lá fora, melhor será refazer a vida de raiz nalgum porto de abrigo, o mundo é grande.