quinta-feira, 30 de março de 2017

Quintos de ouro e mausoléu

(..) Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a Casa das Fidalgas. Seja ele como for, é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes.
O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Ele era neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil, há muitos anos atrás. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu era um céu de caixotões pintados, com o brasão ao fidalgo no lugar central. O resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, nos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com crocodilos, e palmeiras, e coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, reflectindo a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro". E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor .,.. no mar da Baía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, implorou D. Luís a protecção da Santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado dum solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do Solar dos Brasis. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.
Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão, e ele foi-se embora sem saber a verdade. Ao menos foi em paz. (...)
A história não terá remissão. Mas quem quer remir-se é a assistente, que aborda o viajante quando este vai de partida. Em querendo poderá ver, ali na igreja matriz, umas talhas do tempo da capela, e dos mesmos anónimos artistas.
O viajante fica duvidoso, cansado destas pompas inúteis. Outros são as galas e os milagres que ele gostava de ver, se os encontrasse. Diz a mulher que apareceram candidatos à compra do solar, para o transformar em turismo. Porém este viajante, atento ao que a casa gasta, mantém o cepticismo. Se os milagres da Senhora da Penha e do ouro brasileiro não lograram convertê-lo, não há-de ser agora com os negócios europeus que se vai obrar a maravilha."
[in PORTUGALMENTE - PEREGRINAÇÃO DA LAPA A RIBA-CÔA, Jorge Carvalheira, Ed. Âncora e Fund. Vox Populi, Lisboa, 2012]
NOTA: Resolvi ir ver a igreja da Torre, e as talhas que nela fizeram os mesmos entalhadores da Casa das Fidalgas. Têm 300 anos e folha de ouro. São de bom castanho antigo e aqui estarão ainda passados outros tantos, porque nenhum tempo as reduzirá a pó como os barros pintados de Braga.
O tecto do transepto está decorado com caixotões de santos e figuras bíblicas, todas em tons encarnadiços. Não sei quem os pintou, nem uns nem outras.
Ao fundo da nave, encostado a uma parede, está um Cristo Redentor em cima duma peanha, como já temos visto. É da fábrica de Braga, e cobre-o uma túnica roxa. Cordeiro quaresmal sacrificado, assusta mais que edifica. E não fazia cá falta!