sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Berrão

Lá em baixo, na crista dum outeiro, alvejava a casa branca, que antes de ser uma casa era um esqueleto de alvenaria crua.
Um dia, há-de haver cinquenta anos, chegaram os mestres carpinteiros, de alguma terra distante. Construíram o sobrado, ouvia-se-lhes ao longe o tambor dos martelos, a ressoar na caixa das paredes. Içaram as cumeeiras, alinharam caibros e barrotes, montaram a gaiola do telhado. E eu via-os cá de longe, da varanda, a gatinhar lá por cima, a encaixar as telhas avermelhadas. Ainda guardo no ouvido o grasnar do capataz, o Berrão, que não fazia mais do que berrar. A este que se atrasava, àquele que acendia um cigarrito, a outro porque deixara uma falheira em falso, porque ficara uma telha mal assente.
No final caiaram as paredes e a casa ficou pronta, era um sinal novo na paisagem. O Zé da Estrada criou os filhos nela. E os castanheiros que povoavam a quinta eram da altura das nuvens e ramalhavam ao vento. Tinham troncos carcomidos, tinham a idade do mundo.
Muitos anos depois do Zé da Estrada, os donos da casa branca morreram, na cidade. Os filhos nem a quinta conheciam, e a casa branca vendeu-se. A um sujeito que traficava na coca, já não sabia o que fazer ao dinheiro. Tinha negócios de areias, e máquinas, e cavalos, e mulas que despachava no comboio para a Europa, a entregar as encomendas.
O sujeito era o espelho do futuro, dum Portugal triunfante, por muito pouco não foi comendador. Até ministros pouco recomendáveis lhe apareciam ao serão, em automóveis escuros, que se embuçavam atrás do lusco-fusco, à beira do ribeiro. Bebiam conhaques velhos, trocavam cumplicidades, faziam uma mãozinha de sueca. E desapareciam alta noite, numa piscadela de olho, aconchegados pela escuridão.
A certo ponto as coisas correram mal, porque apareceu a polícia, a farejar. O sujeito passou um tempo em África, e a casa branca acabou em leilão. Mas ninguém a arrematou. Numa noite alguém lhe pegou fogo, certa manhã apareceu dinamitada. Desde então é um cadáver de cascalho, amontoado na crista do outeiro.
Agora nenhum sinal branqueja na paisagem. E já ninguém se lembra do Berrão.