Não há, porém, sol que se levante sem primeiro se pôr, e isso é justamente o que acaba de suceder com esta fraca luz de finais de Novembro. A noite vai-se apoderando da paisagem, vai dissolvendo ruas e pracetas, enquanto sobe lenta as ladeiras do bairro. Esperando por isso andou Gaspar a tarde inteira, doem-lhe os pés cansados de pisar o tempo, doi-lhe na alma este abandono, e no estômago alguma fome. Volta a bater à porta que já conhecemos, prolonga uma insistência vã, e aventura-se por fim a lançar mão dum telefone. Um amigo virá apanhá-lo no bairro, à esquina da fábrica velha, e não há qualquer mistério nestes códigos, o caso é que só quem ali viveu antes de o quarteirão antigo ser demolido e urbanizado, só quem saboreou os almoços à sombra do telheiro,nas tardes de domingo, os poderá entender. Gaspar é assaltado por recordações que apenas o tornam mais vulnerável, seria agora caso para lembrar aqui velhas fraternidades, vindas do tempo do colégio, quando a rebeldia ensaiava os primeiros passos e o entendimento do mundo abria lentamente o seu caminho, antes de a vida ter começado a despachar cada um para seu lado, este para a guerra de Angola, aquele para Coimbra, algum para onde foi possível, e isso é o que faríamos se não tivessem surgido ali à esquina os faróis amarelos de que estávamos à espera.
Nessa noite se juntou o grupo e se fez a análise da situação, era assim que se dizia, havia quem tivesse informações do partido e nãose duvidava de que eram as melhores, decidiu-se que o mais prudente era ficar algum tempo a ver em que paravam as modas. Anda no ar uma grandíssima fuzilaria contra os conjurados traidores, com pedidos de denúncia e captura, veremos em breve que nem só de exercícios verbais se trata, este alarido de botas da tropa na escada de madeira é duma força de milicianos que às três da manhã sobem ao terceiro andar onde Gaspar morou, range alguma tábua carcomida e há alvoroço na vizinhança, e levam nas mãos verdeiras armas de guerra enquanto passam revista a esta sala e àquele quarto, vê debaixo da cama e abre-me esse armário, vai tu à copa e à cozinha, e ao sair, de armas em bandoleira, nenhum deles soprou no cano da espingarda porque não chegou a usá-la, os dois garotos estremunhados nas camitas não lhes pareceram inimigo à altura. Mas eles voltarão. (Cont.)