Gastei quarenta e duas horas integrais, vezes sessenta minutos, vezes sessenta segundos do meu estimado Agosto em frente dum microfone, a gravar um calhamaço que um invisual utente pediu à Biblioteca Sonora. Estive mais que uma vez a pontos de claudicar, de chamar o 112, de recolher a um convento. Valeram-me os resquícios dum antigo espírito de missão que não sei para que me serve.
A primeira coisa que um qualquer cigano faz, para dominar um jumento, é garrotar-lhe o cachaço no laço duma corda, ou meter-lhe um cabresto no toutiço e sujeitá-lo a uma rédea. Ora isto foi o cabresto do nosso pensamento.
Em meados do séc. XVI crescia entre a humanidade pensante a recusa da medievalidade, alteravam-se as visões do mundo, lutava-se pelo conhecimento físico dele, germinavam anseios renascentistas, libertava-se o espírito de névoas teocêntricas, destronavam-se os deuses e conferia-se ao homem o lugar que era o seu. Mudava-se o pensamento e abriam-se os caminhos do racionalismo, da experiência, da luz, da razão e da objectividade.
- Eppur si muove! - regougava Galileo ao imenso poder do Vaticano.
Por cá não estava parada a tropa jesuíta. E bem andaria ela, essa elite da nossa universidade e do nosso pensamento, dedicando-se a inventar o chocolate, ou a transformar em gusa os minérios do ferro, se isso não fosse pedir demais e muito cedo. Mas era ao serviço do Vaticano que nesse tempo, e nos tempos seguintes, o melhor da inteligência portuguesa se gastava, roçando a pança pela metafísica, enquanto deglutia o miolo da pátria. A ruminar na escolástica e no silogismo antigo, a dilucidar premissas falsificadas, a esvair-se no nada do comentário e da especulação. Faz lembrar os tempos de hoje.
Para edificação geral ficam aqui uns highlights, (sobre os órgãos e funções e natureza dos sentidos), embrulhados com a inquietante pergunta: o que é que levará hoje um utente invisual a pedir à Sonora a gravação das seiscentas páginas dos Comentários do Colégio Jesuíta Conimbricense ao De Anima de Aristóteles?
Três funções são atribuídas pelos peripatéticos ao intelecto agente. A primeira é iluminar os fantasmas. A segunda, produzir o objecto inteligível em acto. A terceira, produzir no intelecto paciente as espécies inteligíveis. (...) Existe, portanto na alma intelectiva a faculdade activa de fazer nos fantasmas as coisas inteligíveis em acto. De facto esta afirmação não colhe. Com efeito, como argumentava Durando, aquilo que o intelecto imprime no fantasma, ou é algo espiritual ou corporal. Se é espiritual, certamente que não pode ser recebido, de passagem, no corpo ou no acidente corpóreo. Se é corporal, visto que, além disso, se mantém dentro dos limites materiais da natureza, como é que poderá comunicar ao fantasma a faculdade para produzir uma qualidade imaterial?
Nós, todavia, concedemos, em absoluto, a premissa maior. De facto, é comum a todo o conhecimento, tanto do intelecto, quanto do sentido, quer seja interno, quer seja externo, ser produzida através da assimilação e expressão da coisa conhecida. Portanto, deve ser negada a premissa menor, e em sua confirmação dizer que o pensamento de Aristóteles neste ponto é que o sentido externo é levado para o objecto, enquanto nele está contido segundo o conhecimento expresso, não como se esta coisa também não estivesse no segundo modo no sentido externo, mas porque o sentido requer, além disso, a presença externa da coisa, que cai sob o seu conhecimento, o que o intelecto não reclama.
Além disso, recomenda-se o mesmo, porque nos bens em que um dos quais não se contém o outro, considera-se mais eminente aquele cujo oposto é o pior, conforme ensina a regra tópica de Aristóteles (...). Ora o oposto do amor é o pior, e deve ser mais evitado do que o oposto do conhecimento, como é evidente no ódio a Deus, e na ignorância d'Ele. Por isso é muito mais detestável odiar a Deus do que ignorá-l'O.
A espécie, efectivamente, é causa eficiente embora não íntegra, mas parcial, da intelecção. Porque se a espécie e a intelecção fossem a mesma coisa, não poderia ser considerada pela potência divina, não só a espécie sem a intelecção, mas também a intelecção sem a espécie. Isto é evidentemente falso, porque, cessando o acto de inteligir, a espécie permanece, e, suprimida a espécie, Deus pode produzir com o intelecto o acto de inteligir, visto que toda a causalidade eficiente pode ser preenchida pela potência divina.