quinta-feira, 10 de abril de 2025

As Aves 6-3

À medida que os tanques ocupavam a cidade, seguiam-nos multidões eufóricas que enchiam de ruído largos e pracetas. Era a hora do ranger de dentes que chegava. Já rasga este ministro as temerosas vestes, já outro arranca os cabelos às punhadas, não poucos ameaçam desfazer-se em prantos, um por falência de ânimo, outro por sobrecargas de consciência, todos por contrição tardia. Mas o ministro da guerra acaba por achar uma saída, neste compasso extremo incumbe-lhe o mandato, mais que a ninguém. Avance este ordenança de picareta em punho, logo ao fundo do túnel nos aguardam as luzes do ministério da marinha, saímos o portão do arsenal como simples paisanos, gritamos um viva ao reviralho indispensável sendo, ninguém dará por nós.

E assim foi, que estes soldados trazem a redenção, não são jacobinos cortadores de cabeças. Ninguém dará por eles, como ninguém deu pelas notícias primeiras dos jornais, são as de ontem e do costume, se traziam alguma actualidade logo ali a perderam, os próprios ardinas calaram o pregão.Há-de, porém, ser verdade, se quem o diz é o jornal de maior circulação em Portugal, uma multidão de excelências esteve a inscrever-se no livro de cumprimentos ao Chefe do Estado, que é a excelência máxima, por acaso moramos no mesmo bairro mas não andamos tu-cá tu-lá todos os dias, era o que mais faltava, ninguém nos levava a sério, daí usarmos destas cortesias para nos declarar veneradores e atentos, e mais que tudo obrigados, e foram elas a excelência Costa, presidente da Câmara Corporativa, e a excelência Baptista, ministro do Interior, e a excelência Santos, procurador geral da República, e a excelência Marchueta, governador civil de Lisboa, e a excelência Sebastião, presidente do município da capital, e a excelência Rosas, governador do banco que manda cunhar os dinheiros do império, e a excelência Medina que é embaixador, e ainda as excelências Pinto e Rebelo que não se sabe o que são, e, se mais alguém veio cumprimentar o venerando Chefe do Estado e aqui não é designado, é do repórter a culpa, por não ter reparado em tudo quanto havia que ver, ou de quem lhe censurou a peça, por ter ele visto mais do que devia.

E no paraíso terrestre dum milionário do estanho, por entre centenas de convidados da melhor sociedade internacional, conviveram durante oito dias sete barões, seis condes, cinco princesas, quatro lordes, três duques com as respectivas duquesas, finalmente um rei e uma rainha, e a famosa begun Aga Kahn. Tão ilustre e luzida comitiva é que vinha a calhar a esta mulher, sentada ali sozinha no banco dos réus do terceiro juízo criminal da Boa-Hora. Tem trinta anos e acaba de ser detida na cidade do Porto, onde levava há doze uma vida de trabalho pacato, com falsa identidade. Um dia já distante agarrou nos comandos do avião da TAP que vinha de Casablanca, e andou pelas cidades do país a distribuir panfletos, há trezentos anos era o canto do cego a chorar pelas feiras a Índia que se afogava, hoje requerem-se outras técnicas, o destino é parecido. E foi assim que choveram panfletos em Beja, em Faro, no Barreiro, em Lisboa, não se pense que os tanques arrancam dos quartéis por ter passado mal a noite um capitão. Chama-se Helena esta mulher, que volta finalmente ao nome que lhe incumbe, e vai ser condenada aos curros do Aljube, se nenhum milagre vier a acontecer. Por pouco iludia até ao fim os troianos da Pide, e agora descobre toda a razão que tinha, ao predizer que a derradeira e final salvação havia de ser um oportuno levantamento militar.

De militares quem sabe é o Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, morreram em combate o primeiro cabo Fernandes,de Paço de Arcos, o segundo-sargento paraquedista Tomé Costa, de Bubaque, concelho dos Bijagós, este provavelmente negro, e um capitão do Alvendre, para quem não souber uma aldeia a três quilómetros da Guarda, já teve um castro e um castelo e agora não tem nem um nem outro, que o primeiro foi derrubado há muito e o segundo foi destruído agora, e mais dois soldados, o Gaspar de Valongo e o Correia de Cinfães, o primeiro cabo Castro, que não era de pedra, como o outro, e veio de Guimarães, e o furriel Melo, este da Vila da Feira.

Alguns deles seriam homens casados, é o natural da vida, se tinham filhos quem vai agora pôr os olhos neles, incómoda questão que nos fica em aberto, não sabemos responder. O mais certo, porém, é ser a maioria gente solteira e descomprometida, jovens que mal tinham começado vida, reparemos nas fracas patentes de quem ainda não passou da flor da juventude. Pois forte razão havia para todos se manterem nesta ocasião bem vivos e atentos, a oportunidade não se repetirá, acaba de ser proclamada a rapariga ideal deste ano, tem desassete vicejantes anos, é no Porto que vive e chama-se Ana Paula. Anda um homem à procura a vida inteira, tantas vezes se engana, e se repete, e mulher a gosto nem vê-la, e agora tínhamos aqui toda a papinha feita, salvo seja, a rapariga ideal nestes exactos termos, porque os testes não mentem, muito menos ia agora enganar-se o olho clínico do júri. (Cont.)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

As Aves 6-2

O povo de Cacilhas começou a descer o portaló dos barcos que atravessam o rio, e tropeçou nos soldados que faziam guarda às esquinas da praça, não é que viesse a despropósito uma revolta da tropa, importa é saber a mando de quem estes vão e com que fins, quem terá ouvido aqui alguma inconfidência é o rei de bronze que está ali de vigília no meio do terreiro. Mas tudo isto são manobras de populacho republicano, delas se precata el-rei, indiferente e alheio a esta disputa, tanto precisávamos nós de o saber e ficamos na mesma.

Vem descendo a avenida esta mulher, traz encostado ao peito um ramalhão de cravos, parece que vai engalanada para a festa, e ainda não sabe que a uma festa se dirige. É dia de aniversário na casa onde trabalha, razão de tão generosa provisão de flores, modo maior de coroar a fidelidade dos clientes. Mas desde manhã cedo se estão ouvindo na rádio velhas cantigas há muito proibidas, do Zeca Afonso e outros, ou dormem hoje os censores ou alguma coisa aqui aconteceu, entre boatos e rumores toda a gente anda num alvoroço, e mais que todos o patrão timorato, fechou o restaurante e mandou para casa os empregados, escusadas são as flores. Ao chegar ao Rossio encontra a mulher os primeiros soldados, simpáticos parecem, se não é justo dizer que mais parecem civis, em cima do camião da tropa. Um deles pediu-lhe um cigarro, num gesto que há-de considerar-se peregrino, visto o tempo e as circunstâncias, ofereceu ela um cravo vermelho, era o que tinha. O soldado engrinaldou-o na boca da espingarda, por um momento olhou a obra e achou que estava bem, porque sorriu. A mulher viu-se tomada por um contentamento que não sabe explicar. Deu o seu gesto em repetir-se, sem o saber tinha baptizado a revolução. E soltara, entre o povo e a tropa, uma conivência de que ninguém tinha memória.

Também Geneviève guarda lembranças da revolução mas ruas de Paris, em 68, delas nos está dando entusiasmada conta. Gabriel vai ouvindo e acaba a sorrir, discretamente. Lembro-me bem, concede ele, o mundo viu como se esgotou nas bombas a vossa gasolina que ninguém distribuía, por isso andou a pé nos bulevares muita gente que não tinha melhor pretexto para o fazer. O mundo viu as vossas duquesas, podres de chiques, a distribuir boquinhas de êxtase e cigarros de luxo à juventude que incendiava automóveis e esventrava calçadas, entre batalhas com esquadrões da polícia, enquanto um barão de Rolls-Royce distribuía comunicados de apoio à revolta, conduzido pelo motorista de uniforme. O mundo inteiro ouviu-os gritar que era proibido proibir, que ser realista era pedir o impossível, e exercícios que tais. Dizem que foi assim a vossa revolução, uma espécie de tédio da fartura, e não serei eu a negá-lo, também entre nós houve coisas parecidas, vistas à proporção. Mas, ao comparar histórias e lembranças, convém saber primeiro de que estamos falando. Nesse tempo, talvez houvesse no meu país um português antigo, não sei onde, com memória de ter lido, alguma vez, um jornal que não fosse retalhado pela censura. Três quartos dos meus concidadãos nunca tinham visto uma urna de voto, viciada se convinha. e quem tivesse menos de cinquenta anos não vivera um único dia da vida em liberdade. O ponto de partida da minha revolução era a penúria original, era a mordaça abjecta, era a histórica cegueira, era a mentira iníqua. Andaram entre nós os vossos pensadores, que a novidade e os ecos de anarquia atraíram, lembro-me deles a analisar movimentos e a semear ilusões, a explicar como se virava o mundo sme patrões, a empurrar docemente o povo para becos sem saída. Da memória das vossas revoluções, o que reverencio é o estrondear da tomada da Bastilha, é o fragor fugaz das barricadas da Comuna, é o pavor da vossa fidalguia empoada e o começo do mundo que se lhe seguiu, bom ou mau tenha sido.

Vão três pessoas aconchegadas no limitado espaço duma carruagem de comboio, em conversa amena sob o dossel da noite, parece que tudo as vai aproximando, até que vem meter-se entre elas um mar inteiro de distância. Há uma perturbação no ar, ao instinto sagaz de Geneviève não escapa a intolerância radical de Gabriel, que não disfarçou o sarcasmo, será tudo obra do cansaço e do rodar da noite. A mulher deixa cair a última pergunta, primeira de todas na lógica das curiosidades, quer saber por que vão neste comboio os viajantes. Porque a revolução é como o velho Cronos, responde Gabriel, cedo se põe a devorar os filhos, mormente os que mais ideal e maior zelo lhe entregaram, é dos livros que nenhum logrará escapar. Mais não disse Gabriel, e a isto não soube Geneviève o que responder, quiçá ficou na mesma, o silêncio instalou-se.

Gaspar lamenta o rosto da mulher a fechar-se, próprio de quem se ausenta, distante vai já Gabriel, recostado finalmente na poltrona, de olhos fechados, as mãos cruzadas sobre o ventre inquieto. É da natureza da revolução, pensa Garpar, tão difícil de levar à prática por não haver possível consenso sobre ela. Ponham-se dois a discuti-la, que logo este alega um sofisticado mal-de.vivre onde aquele argumenta com a fome ancestral da terra, sonha um com o devaneio da liberdade sem limite, quando outro aspira apenas à mesquinha dignidade original do ser humano. Todo o movimento é ditado pelo modo como cada homem vê o mundo, segundo o lugar que nele ocupa, houvesse geral entendimento sobre a revolução e logo ela se tornava supérflua.

A nós saiu-nos a personagem dos limites da urbanidade, apuradíssima no lugar e na circunstância, forçoso nos é silenciá-la. Ainda bem que Poitiers está perto, é o destino da mulher. Cabe agora a Gaspar devolver-lhe o saco de viagem, ela endireita a capa e despede-se numa cortesia discreta, se este aceno não foi uma afeição que apenas aflorou. No resto da noite só Gaspar velará, entregue ao fluir dos pensamentos. Acrescentemos nós aqui o que por dizer ficou, desses dias de júbilos e risos, de ilusões e de fraternidades que não vão repetir-se, desses dias de angústias e delírios em que a vida ganhou um final sentido novo, e a certeza segura de que o futuro estava ali, ao alcance da mão. (Cont.)