Ouvir Cavaco Silva falar à Nação, a pretexto do Ano Novo, é um exercício que requer algum estômago e muita tolerância. Espertiço e sonso, português de lei, atira ao ar la palissadas demagógicas, entre dois tremoços. A contar com a nossa desmemória.
Enquanto se declara acima do combate político-partidário, carrega no tom catastrofista do quadro do país, como quem descobre a pólvora. E com responsável implícito, que é o governo. Ele é a dívida externa que sobe, ele é o desemprego que galopa, ele é a produtividade que continua baixa, ele é a Justiça e a Educação que se atascaram, ele são as inúteis querelas contra a família, ele é o desequilíbrio das contas públicas, ele são os bens e serviços que não produzimos, ele é o reforço da competitividade que tarda, ele são as encruzilhadas decisivas que nos esperam, ele é a situação que se torna explosiva. Nada, porém, é dito sobre os comos, e muito menos ainda sobre os quandos e os porquês. Sempre a contar com a nossa desmemória.
Porque Cavaco governou o país na década dourada, entre 86 e 95, quando os fundos chegaram da Europa e Portugal estava todo à espera que o fizessem. Que fez Cavaco Silva da Agricultura? Abreviou-lhe os prazos de modernização, em troca de mais fundos. Que fez Cavaco Silva das Pescas? Trocou-lhes a ferrugem por dinheiro. Que fez Cavaco Silva da fraca Indústria? Abreviou-lhe a agonia. Que fez Cavaco Silva da Economia? Reduziu-a ao asfalto e ao betão. Que fez Cavaco Silva da Educação? Abriu a selva das faculdades de papel e lápis, as Modernas, as Independentes, as Internacionais, com que encheu a barriga dos aficionados e defraudou a inteligência indígena. Que fez Cavaco Silva da Justiça? Dobrou-se ao pesadelo corporativo que ainda está à vista. Que fez Cavaco Silva do país, e do poder que teve para o transformar? Amamentou uma clique de barões, de videirinhos e de falsários, a quem o poder caiu nas mãos e com ele trataram da vidinha. Que fez Cavaco Silva dos atavismos indígenas, do nosso atraso lendário, do arcaísmo mental de Portugal? Convenceu-nos de que já éramos ricos e modernos, de que vivíamos num oásis, com direito a crédito e a consumo. Que fez Cavaco Silva ao seu próprio partido? Submeteu-o a um tabu que durou um ano inteiro, para no fim o abandonar à orfandade de que ainda não saiu.
Cavaco Silva é um duque de paus, num país que precisa dum ás de trunfo. A sua melhor performance esteve na conspiração das escutas, e na insanidade da comunicação que então fez ao país. Debaixo da casaca dá hoje acolhimento aos sem-abrigo da política, e a todos os mitómanos da oposição.
Conforme se esperava, Cavaco Silva entrou no Ano Novo em campanha eleitoral. Ao governo competirá cuidar-se. E aos portugueses também.