quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Já não era sem tempo!
Numerosas edições têm alimentado nos últimos tempos o fiel mercado do saudosismo africano. E não é que a questão colonial, e os dramas do fim do império, não mereçam atenção, bem ao contrário. O país e os portugueses (os retornados e os outros) têm com essa história largas contas em aberto. Mas não dão muitos sinais de querer saldá-las. O resultado é fatal, por ser esta uma verdade do mais elementar senso: quem não aprende com os erros, passa a vida a repeti-los; os erros velhos e os novos. Ora se isto é verdadeiro ao nível individual, mais o será à dimensão colectiva.
A maior parte são relatos irrelevantes, de dimensão pessoalista, fechados em si próprios. São saudosistas e nostálgicos, de paraísos perdidos, de haveres levados na voragem, de vidas que naufragaram, de sonhos que deram em pesadelo. Recusam evidências da história, negam a realidade, aferram-se a mitos quiméricos, e a patriotismos de pacotilha. Nada acrescentam à nossa pobre consciência.
O Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, da editora Angelus Novus, é uma pedrada nesse charco. Corre o risco de parecer uma traição, muito embora seja o seu contrário. E aqui se saúda vivamente.
A autora fez-se gente em Lourenço Marques, que deixou em 1975, quando tinha 13 anos. E é trinta e tal anos depois que nos traz uma visão da realidade colonial, através do seu olhar de criança e adolescente. A maior parte do discurso reproduz conversas de adultos. E o seu olhar é límpido, sem arcas encoiradas, a deixar sem conserto a multirracialidade lusa, a pluricontinentalidade pátria, a nossa piedosa missão colonizadora, e outras balelas funestas que há muito nos condenaram à indigência, real e figurada. É um olhar herético, traidor, que lhe saiu das tripas. Não diz nada que não saibamos todos. Mas afirma o que todos insistimos em desconhecer. Honra lhe seja feita!
- Para uma branca, assumir uma união com um negro implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado. (p.14)
- O meu pai nunca quis empregados brancos. (...) Um branco saía caro, porque a um branco não se podia dar porrada (...) O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos. (p.24)
- Em Moçambique era fácil um branco sentir prazer de viver. Quase todos éramos patrões, e os que não eram, ambicionavam sê-lo. Havia sempre muitos pretos, todos à partida preguiçosos, burros e incapazes a pedir trabalho, a fazer o que lhes ordenássemos sem levantar os olhos. (p.25)
- Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. (p.27
- Um branco e um preto não eram apenas de raças diferentes. A distância entre brancos e pretos era equivalente à que existe entre diferentes espécies. Eles eram pretos, animais. Nós éramos brancos, éramos pessoas, seres racionais. (p.35)
- A única hipótese de não haver milando, era meterem o dinheiro recebido no bolso das calças rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e não eram poucas as vezes em que saíam da sala com um murro nos queixos, um encontrão dos bons. Havia milando bravo. (p.41)
- De forma geral, no cinema ou fora dele, o olhar dos negros nunca foi, para os colonos, isento de culpa: olhar um branco, de frente, era provocação directa; baixar os olhos, admissão de culpa. Se um negro corria, tinha acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar. (p.46)
- Havia uma guerra, mas não era visível a Sul; não sabíamos como tinha começado, ou para que servia exactamente. (...) Havia guerra porque havia turras. Havia turras porque a natureza humana era maldosa e insatisfeita. (...) A guerra era no Norte, mas não tomávamos consciência da sua gravidade, não se falava em soldados dos nossos que tivessem sido mortos (...) Achávamos que estavam lá pelos quartéis a cumprir a tropa, a fazer umas acções de propaganda. A dar uns encostos nos negros que não se portassem bem, o que era normal. Ou a limpar-lhes o sebo, se fossem teimosos e não obedecessem. (p.64)
- O meu primo tinha sido educado no mais profundo desprezo pelo negro. Quando fez 19 anos, e o mandaram para o Niassa, partiu contente. Ia lutar pela califórnia portuguesa. Descia a Lourenço Marques de nove em nove meses, mas já não era o mesmo. Deixou crescer a barba. Era a guerra, e o meu primo nunca falou da guerra. (...) Fechava-se no quarto a fumar e calou-se para sempre. (...) Olhava-me com uns olhos vivos e tinha vergonha de mim. (p.69)
- Tinha acontecido uma revolução na Metrópole. (...) O governo tinha mudado de mãos, e bem, que os que lá estavam roubavam-nos todos os dias. (...) Ah, finalmente África ia ser nossa! Finalmente íamos deixar de pagar impostos aos cabrões da Metrópole! Agora poderíamos prosperar e fazer da nossa terra uma Califórnia. Era isso que a nossa terra ia ser: a Califórnia. (p.77)
- Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. "A independência foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos". Eu traduzo, "aquilo que entregaram aos pretos deviam tê-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada". Quando revelam, com lágrimas sinceras, "deixei o meu coração em África", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha uma vida tão boa". (p.83)
- Com ou sem independência, um preto era um preto, e o meu pai foi colono até morrer. (p.98)
NOTA: O pequeno capítulo 38, e mais a autora dele, pedem um comentário específico. Que ele exige, e ela talvez mereça. A ver vamos!