O maurício picapau foi tipógrafo durante um ror de anos. Fartou-se de esquadriar linguados no linótipo, já via tudo mais pardo que o chumbo dos caracteres. Costumava passar todos os dias no jardim de são lázaro, abria os olhos para o céu alto e deleitava-se com a majestade das copas das tílias. Pareciam mesmo árvores da pomerânia.
De há uns tempos para cá, começou a andar de cabeça baixa e ar consumido. Os computadores entraram na gráfica ideal e desataram a fazer o trabalho com uma prontidão nunca vista. Primeiro o maurício ficou regalado, depois ficou perplexo, e finalmente aflito. Mas o pior sucedeu no dia em que o patrão falou da flexibilização do trabalho pela primeira vez. O rapaz levou o lenço tabaqueiro aos olhos, talvez para estancar uma emoção inoportuna, e deu conta de que estava a crescer-lhe um bico na ponta do nariz.
A situação agravou-se com o tempo, à medida que o patrão entrou a falar de globalização, de deslocalização e de coisas assim. O bico do nariz cresceu-lhe descontroladamente, e o velho tipógrafo acabou mesmo despedido, por clara inadequação para o serviço.
Depois disso, o picapau continuou a fazer todos os dias o trajecto de sempre, mas nunca foi além do jardim de são lázaro. Mirava de longe os velhos reformados que lhe estranhavam a fisionomia, às vezes subia o olhar pela majestade das tílias e pensava na família, pensava na ordem de despejo por falha da renda, pensava numa solução para a vida. Até que um dia deixou avançar a tarde, marinhou pela tília mais alta, e passou a noite a escavar uma toca numa forquilha aconchegada.
Na manhã seguinte mudou-se para lá com a mulher. A entrada é acanhada, de tão redonda, e o nariz é complicado de arrumar lá dentro. Mas há males que vêm por bem, com este inverno de chuva que anda por aí.
[in Mensário do Corvo, 2002]