Um poeta visionário deixou dito que Portugal é o futuro do passado. E o país ficou na mesma, porque a vice-versa também era verdadeira. O poeta era um fingidor.
Agora o Presidente pegou-lhe na palavra, no jeito pio que tem para incutir ânimo aos portugueses, diante das tribulações que os fustigam. Possuímos uma longa história de que nos orgulhamos, porque no passado não tivemos medo. O Presidente podia ter lançado mão do dichote popular, que manda comprar um cão a quem medo tiver. Mas enquanto estadista de recorte, a vulgaridade não lhe assenta bem. Quadram-lhe melhor as brumas da memória, e a longa história dos heróis do mar.
E o Presidente tem um pouco de razão. Ter ido à Índia pelo mar tenebroso foi nessa altura um gesto transcendente, de enormes repercussões. É de orgulhar qualquer um.
Mas o Presidente deveria saber que um país com um milhão de habitantes, que se abalança a fundar um império, ou pode e sabe fazê-lo com sucesso, ou acaba soterrado nos destroços. É trocar a boa capa por um mau capelo.
O Presidente deveria saber que o nosso império da Índia começou por ser uma temeridade, de uma elite cúpida e aventureira. Ao fim de 50 anos estava na bancarrota,donde nunca mais saiu. A regente Catarina, viúva do rei Piedoso, resumiria nas Cortes que a sustentação do império do mar só poderia obrar-se por milagre. E cem anos depois o rei Restaurador havia de confessar que lhe poria fim, se houvesse um modo honroso de o conseguir.
O Presidente deveria saber que a partir daí o império se tornou um crime de lesa-Portugal. Serviu um escol de cortesãos e heróis, que fizeram carreira e amontoaram fortuna. Mas ao país de Portugal nem migalhas chegaram. Ao país de Portugal, o império da pimenta condenou-o à penúria, ao abandono, ao atraso, à precaridade, a viver de quimeras e trapaças, de equívocos e milagres e promessas, e de sebastianismos ocos. Ao país de Portugal o império roubou-lhe a alma, corroeu-lhe as entranhas, impediu-o de ser.
Os portugueses atormentam-se, matam-se entre si, por ainda não terem compreendido que o reino, após ter realizado grandes conquistas, viveu mais de três séculos do trabalho de escravos, e que, uma vez perdidos esses escravos, é preciso pôr de pé uma nova forma de vida, apoiada no seu próprio trabalho. [Mouzinho da Silveira (1780-1849), ministro de D. Pedro e notável lutador pelas reformas liberais]
Em 1992, no Senegal, o papa João Paulo II penitenciou-se pelos erros da Igreja Católica, face aos negros africanos; em 2005, no mesmo Senegal, Lula da Silva pediu perdão pelo que fizemos aos negros; em 2006, Jacques Chirac lamentou a história em relação aos negros; em 2006, na Mina, o Canadá fez o mesmo; em 2007, no Gana, Tony Blair pediu desculpa aos negros, pelo papel da Inglaterra no tráfico negreiro; em 2009, o Senado americano secundou-o.
Por cá, certas elites orgulham-se há muitos séculos do passado glorioso. O país é que não sai do mesmo lugar. O império da pimenta acabou por desabar em 1975, em fogo e ranger de dentes. E os portugueses só descobrirão um rumo novo quando olharem de frente o passado e os seus erros. Doutro modo apenas os repetem, conforme vai fazendo o Presidente.