À minha amiga AnaLee!
O engenheiro Sócrates é muito parecido com os portugueses todos que vivem em Portugal. São pimpões, oportunistas, vivem mais para fazer ver. Engenheiro ou doutor tanto lhes faz, e só se não puder ser. É esse o pormenor que o salva.
Comparado com a direita portuguesa, Sócrates é um caramelo. Amargoso muitas vezes, mas caramelo ainda assim. Porque a direita que nos governou séculos, e fez de nós o que somos, é hoje igual ao que foi. Ainda traz as cuecas sujas que usou nas guerras de Alcácer. Fede a cortinados velhos e a preguiça. Tresanda a pratas roubadas, e ao sangue seco dos pretos que usava como troféus, à entrada do salão. Cheira ao mênstruo das noivas dos direitos de pernada.
Uma direita assim não leva a nada. E esta esquerda que temos, assim suspensa no tempo, à espera que a história lhe dê passagem um dia, também nos não conduz a sítio nenhum. Bem se dirá que podemos ficar à espera sentados.
Nesta democracia dos senhores, o povo nunca teve outra opção que não fosse escolher o mal menor, atendendo à circunstância concreta.
quinta-feira, 30 de julho de 2009
A encruzilhada
Boqueja-se que Manuel Dias Loureiro, dilecto filho de Aguiar da Beira, deputado da Nação, ministro de Cavaco Silva, conselheiro de Estado do círculo do Presidente, cavalheiro de indústrias de sucesso e um finíssimo alho para os negócios, já não tem bens em seu nome.
A ser assim, está-se num encruzilhada. Ou bem que o homem caiu no despojamento místico, deu aos pobres o que tinha, e um dia destes acaba canonizado, no panteão dos eleitos que nos adornam a história...
Ou então sente a justiça à perna, e teme algum deslize da justiça. Por isso transfere os bens a um vago primo taxista e espera que a chuva passe, até que do passado não restem outros sinais.
O inconveniente do gesto é ser confissão de culpa. É exibir o cartão da confraria dos escroques.
Ainda um dia saberemos o destino que escolheu.
A ser assim, está-se num encruzilhada. Ou bem que o homem caiu no despojamento místico, deu aos pobres o que tinha, e um dia destes acaba canonizado, no panteão dos eleitos que nos adornam a história...
Ou então sente a justiça à perna, e teme algum deslize da justiça. Por isso transfere os bens a um vago primo taxista e espera que a chuva passe, até que do passado não restem outros sinais.
O inconveniente do gesto é ser confissão de culpa. É exibir o cartão da confraria dos escroques.
Ainda um dia saberemos o destino que escolheu.
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Pausa
Portugalmente (42)
(...)
O feitor já voltou à sua folga, e o viajante vai à procura do companheiro de estrada, que está à espera no largo. No caminho encontra a escola da aldeia. É uma construção de sala dupla, e já teve duas professoras. Mais tarde foi jardim de infância, e agora está vazio há muito tempo. Não há crianças para ele. Não há fome que não dê em fartura nesta vida, conforme já temos visto. E se na outra for a mesma coisa, de pouco nos servirá.
O viajante já encontrou o companheiro, já viu o que há para ver. Vai percebendo a morte que aí ronda, nos castanheiros, nas casas e nas vidas. E vai em paz, vazio de emoções, como quem apagou um incêndio interior.
O sobrante da tarde há-de este viajante gastá-lo num lugar que alguma vez já viu, e lhe é muito predilecto. É um saltinho ali à Torre. Vai subindo a pendente suave, entre encostas tomadas pelos matos, donde os soitos debandaram, dizimados pela doença. À direita a frescura da barragem amacia quanto pode a rudeza destes montes. Andam fumos espalhados no céu, não sabe o viajante donde vêm. E já ficou para trás um projecto de pinhal, que a processionária está a derrotar. À medida que a Torre se aproxima avistam-se pelos campos novas plantações, sinal de que alguém resiste. Razão terá o feitor Cláudio, o mal maior está na cabeça das pessoas.
Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja lá como for, é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente social que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
O viajante fica atordoado e põe-se a olhar em volta, não sabe o que há-de fazer. Ensaia a peça de quem vem de longe, pede licença para ir ver o passal, ao menos as fachadas exteriores. Ela deixa-se iludir, mas entrar na capela nem pensar.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Era ele neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava ao viajante o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora, e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, no centro o brasão do fidalgo, o resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, aos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com palmeiras, crocodilos, coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, igualando a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. “Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro”. E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. “Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahia...“. E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, procurou D. Luís à protecção da santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado do solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. “Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar”. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do solar. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão. E ele foi-se embora sem saber a verdade, talvez seja o melhor.
A história não terá remissão. Mas quem quer redimir-se é a assistente social, que aborda o viajante quando este vai de partida. Em querendo poderá ver, ali na igreja matriz, umas talhas do tempo da capela, e dos mesmos anónimos artistas. O viajante fica duvidoso, cansado destas pompas inúteis. Outras são as galas e os milagres que ele gostava de ver, se os encontrasse. Diz a mulher que apareceram candidatos à compra do solar, para o transformar em turismo. Porém este viajante, atento ao que a casa gasta, mantém o cepticismo. Se os milagres da Senhora da Penha e do ouro brasileiro não lograram convertê-lo, não há-de ser agora com os negócios europeus que se vai obrar a maravilha.
(...)
O feitor já voltou à sua folga, e o viajante vai à procura do companheiro de estrada, que está à espera no largo. No caminho encontra a escola da aldeia. É uma construção de sala dupla, e já teve duas professoras. Mais tarde foi jardim de infância, e agora está vazio há muito tempo. Não há crianças para ele. Não há fome que não dê em fartura nesta vida, conforme já temos visto. E se na outra for a mesma coisa, de pouco nos servirá.
O viajante já encontrou o companheiro, já viu o que há para ver. Vai percebendo a morte que aí ronda, nos castanheiros, nas casas e nas vidas. E vai em paz, vazio de emoções, como quem apagou um incêndio interior.
O sobrante da tarde há-de este viajante gastá-lo num lugar que alguma vez já viu, e lhe é muito predilecto. É um saltinho ali à Torre. Vai subindo a pendente suave, entre encostas tomadas pelos matos, donde os soitos debandaram, dizimados pela doença. À direita a frescura da barragem amacia quanto pode a rudeza destes montes. Andam fumos espalhados no céu, não sabe o viajante donde vêm. E já ficou para trás um projecto de pinhal, que a processionária está a derrotar. À medida que a Torre se aproxima avistam-se pelos campos novas plantações, sinal de que alguém resiste. Razão terá o feitor Cláudio, o mal maior está na cabeça das pessoas.
Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja lá como for, é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente social que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
O viajante fica atordoado e põe-se a olhar em volta, não sabe o que há-de fazer. Ensaia a peça de quem vem de longe, pede licença para ir ver o passal, ao menos as fachadas exteriores. Ela deixa-se iludir, mas entrar na capela nem pensar.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Era ele neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava ao viajante o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora, e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, no centro o brasão do fidalgo, o resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, aos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com palmeiras, crocodilos, coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, igualando a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. “Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro”. E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. “Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahia...“. E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, procurou D. Luís à protecção da santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado do solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. “Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar”. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do solar. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão. E ele foi-se embora sem saber a verdade, talvez seja o melhor.
A história não terá remissão. Mas quem quer redimir-se é a assistente social, que aborda o viajante quando este vai de partida. Em querendo poderá ver, ali na igreja matriz, umas talhas do tempo da capela, e dos mesmos anónimos artistas. O viajante fica duvidoso, cansado destas pompas inúteis. Outras são as galas e os milagres que ele gostava de ver, se os encontrasse. Diz a mulher que apareceram candidatos à compra do solar, para o transformar em turismo. Porém este viajante, atento ao que a casa gasta, mantém o cepticismo. Se os milagres da Senhora da Penha e do ouro brasileiro não lograram convertê-lo, não há-de ser agora com os negócios europeus que se vai obrar a maravilha.
(...)
Liberdade e espaço público
A venda do Damião era a um canto da Devesa, mesmo ao cimo do Largo, em frente duns negrilhos que morreram. No sobrado moravam os locandeiros. E nos baixos, a um lado, ficava a mercearia, que sibilas discretas às vezes arriscavam: meio litro de petróleo da candeia, duas velas de sebo para as botas do meu homem, um cartucho de arroz de horas em quando, uns paulitos para o lume.
Do outro lado era a porta da taberna: uns copitos ruidosos, uma rodada às vezes, a mesa do chincalhão. E às tardes quentes de Verão havia quem viesse de mais longe, à patuscada: tomates cortados num barranhão, cebolas às rodelas, duas latas de atum e uns pichorros do tonel. O vinho era da casa, às vezes baptizado. Mas a cepa era de casta e resistia ao baptizo.
Quando os negrilhos morreram, o velho Damião seguiu-lhes o destino. No Largo a venda fechou e a taberna ficou sem serventia.
Até que um dia chegaram ao mesmo tempo a liberdade e a agitação civil. E um herdeiro apanhou este comboio e entrou na vida política. No início foi edil local, mais tarde chegou a deputado. Ganhou importâncias novas, imaginou influências, viu aumentado o tamanho da sombra. E decidiu restaurar a venda do Damião.
Faltava-lhe porém um varandim, com telhadinho em aba, onde as cansadas pernas do deputado pudessem estender-se. E ele avançou rua adentro, plantou no domínio público os merlões senhoriais. A junta ainda protestou. Bem lhe valeu protestar!
Do outro lado era a porta da taberna: uns copitos ruidosos, uma rodada às vezes, a mesa do chincalhão. E às tardes quentes de Verão havia quem viesse de mais longe, à patuscada: tomates cortados num barranhão, cebolas às rodelas, duas latas de atum e uns pichorros do tonel. O vinho era da casa, às vezes baptizado. Mas a cepa era de casta e resistia ao baptizo.
Quando os negrilhos morreram, o velho Damião seguiu-lhes o destino. No Largo a venda fechou e a taberna ficou sem serventia.
Até que um dia chegaram ao mesmo tempo a liberdade e a agitação civil. E um herdeiro apanhou este comboio e entrou na vida política. No início foi edil local, mais tarde chegou a deputado. Ganhou importâncias novas, imaginou influências, viu aumentado o tamanho da sombra. E decidiu restaurar a venda do Damião.
Faltava-lhe porém um varandim, com telhadinho em aba, onde as cansadas pernas do deputado pudessem estender-se. E ele avançou rua adentro, plantou no domínio público os merlões senhoriais. A junta ainda protestou. Bem lhe valeu protestar!
O governo da pólis
Santana Lopes dá-se ares de príncipe da Renascença. Duma estirpe assaloiada, pormenor que o não detém. Anteriores exercícios do poder reduziram-no a cinzas, mas ele renasce delas como a Fénix. No pós-moderno Olimpo em que se move, sabe que tudo é na vida imensamente relativo. E que é frágil a memória dos homens.
Abriu a campanha eleitoral com um ensaio sobre o governo da pólis. E erigiu em modelo o eng. Abecassis. Comove-o o engenho estético da Rua do Carmo repartida em hortas, talhada em jardinzinhos, dividida em canteiros, onde os lisboetas esplanavam. Quando o Chiado ardeu, os carros dos bombeiros não puderam entrar. Mas que raio de importância é que isso tem?! Só não erra quem não faz! Repõe-se a calçada, e pronto!
E o Pavilhão do Chá, cosmopolita e verde, disfarçado nas folhas das palmeiras, em frente do São Jorge?! Batiam nele os olhos e os pés dos transeuntes, confundiam-se os pombos, esbarravam nele os autocarros? Mas que importância tem isso? Indemniza-se um milhão de contos e tira-se o pavilhão!
O enorme arquitecto Frank Gehry dignou-se riscar-nos uns projectos que custaram dois milhões?! Que importa a sua inutilidade, se alguém os há-de pagar?
A última passagem do Zorro das autarquias pela câmara de Lisboa paralisou a cidade, aprisionou-a em calotes, deixou-a na bancarrota?! E que importância tem isso, quando já ninguém se lembra?
No interim, as esquerdas de Lisboa entretêm-se a tirar o cotão do umbigo. E eu havia de ter pena das gentes da capital, se não tivesse a desdita de ir às urnas na província.
Abriu a campanha eleitoral com um ensaio sobre o governo da pólis. E erigiu em modelo o eng. Abecassis. Comove-o o engenho estético da Rua do Carmo repartida em hortas, talhada em jardinzinhos, dividida em canteiros, onde os lisboetas esplanavam. Quando o Chiado ardeu, os carros dos bombeiros não puderam entrar. Mas que raio de importância é que isso tem?! Só não erra quem não faz! Repõe-se a calçada, e pronto!
E o Pavilhão do Chá, cosmopolita e verde, disfarçado nas folhas das palmeiras, em frente do São Jorge?! Batiam nele os olhos e os pés dos transeuntes, confundiam-se os pombos, esbarravam nele os autocarros? Mas que importância tem isso? Indemniza-se um milhão de contos e tira-se o pavilhão!
O enorme arquitecto Frank Gehry dignou-se riscar-nos uns projectos que custaram dois milhões?! Que importa a sua inutilidade, se alguém os há-de pagar?
A última passagem do Zorro das autarquias pela câmara de Lisboa paralisou a cidade, aprisionou-a em calotes, deixou-a na bancarrota?! E que importância tem isso, quando já ninguém se lembra?
No interim, as esquerdas de Lisboa entretêm-se a tirar o cotão do umbigo. E eu havia de ter pena das gentes da capital, se não tivesse a desdita de ir às urnas na província.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
Portugalmente (41)
(...)
A um canto do largo, à beira da estrada, há um pequeno café, e o viajante aproveita para acomodar os seus vícios. O dono do café é um homem ainda novo, mas já tem duas filhas espigadas. São elas a atender os clientes, enquanto estão de férias. O pai vai todos os dias trabalhar à Guarda, numa fábrica de componentes automóveis, mas hoje é dia de folga. Por isso está aqui refastelado, tratado como um rei, a beber a sua cerveja. E a sorte maior vai para este viajante, que nada preza mais que uma boa conversa.
O Cláudio é um homem informado, sabe o que diz quando fala, que a vida permitiu-lhe estudar as manias do mundo e criar o seu parecer, não aconteceu a todos. Calhou entre a geração antiga, a do seu pai, que andou escravizada em França a fugir à miséria, e a geração mais moderna, criada a proteínas e ilusões. Juntou o melhor das duas. E além do trabalho na fábrica é feitor dos condes de Avillez, vai olhando por aquilo. As terras, que há muito ninguém amanha, alimentam as ovelhas de que se ocupa a mulher, a dona Rosa. Mas só vendem os borregos, quando os há. Tosquiam as chalanas por causa do calor, que a lã não tem servidão. Já o leite nem lho tiram, e os cordeiros são quem mais agradece a regalia. Há três rebanhos na aldeia, que os gados miúdos sempre valem a pena, do ponto em que se cumpram as papeladas da Europa e vençam o subsídio por cabeça. Sobram as castanhas a quem as tiver, e enquanto a doença as não levar de todo. Quanto ao resto, só metido à floresta, quem tiver dimensão sempre arranja um projecto. Mas no geral as terras são miúdas.
- E esta decadência, ao que a terra já foi?!
Na ideia do Cláudio, o principal vem da cabeça das pessoas, e ao viajante não custa acreditar. A ruína começou na debandada lá para fora, há quarenta anos acabou-se a mão-de-obra. Mas se a coisa já ia mal de carro, que a vida era uma miséria, muito pior andou de arado, porque a aldeia começou a morrer. E quando o pessoal voltou para fazer uma casa, a junta da altura foi curta de vistas. Era no tempo da outra senhora. Espaços apropriados para a construção também não abundavam, verdade seja dita, e muitos procuraram outras terras. Hoje restam aí meia dúzia de gatos-pingados, e as poucas casas de emigrantes passam o ano vazias. Mesmo nas férias, como agora, já nem todos aparecem. Os filhos só falam francês, fazem a vida por lá. Os netos nem portugueses são, nada os atrai aqui. E os velhos lá gastam a reforma a ruminar lembranças em subúrbios. Já lhes faltam as forças para meter pés ao caminho, quando chega o verão.
Estas casas de emigrantes lembram ao viajante um rei que um dia tivemos, e perdemos. É um enviesado pensamento, mas este viajante já os tem tido piores. Porque o fadário é igual. Nunca nada foi mais desejado, nada fez a um povo inteiro tanta falta. E no entanto, se o rei tivesse voltado, não serviria para nada. A estas casas aconteceu o mesmo, que nasceram para ficarem vazias. São tão desmedidas como os sonhos, e mais inúteis que os mitos. E algumas têm varandins para a rua, à altura dum pescoço. Isto fica a ruminar o viajante, mas o Cláudio já se adianta na conversa.
Um dia chegou a liberdade e as coisas pioraram, que o povo já era pouco e dividiu-se. Por interesses mesquinhos, por orgulhos, por soberbias parvas, pelo dinheiro que se recebe na junta. As diferenças políticas nunca foram nenhumas, em todas as cabeças só regula a ignorância mais escura. E o partido da câmara, que sempre foi o mesmo, explorou rivalidades, dividiu para reinar, é o que sabem fazer. Agora metade do povo evita a outra metade. E as eleições só alimentam disputas, só atiçam cambalachos, o melhor que podia acontecer à terra era acabar com elas. Mesmo assim eram precisos muitos anos para varrer estas contendas. E para algumas nem a morte.
O viajante não sabe em que há-de ficar, quantas vezes lhe parece que a liberdade é tudo, e é engano. Já leu sobre este solar, e bem gostava de visitar a cerca. Há-de ser um modo de escapar a contendas, se lá não for encontrar sarilhos novos. Felizmente o feitor tem folga hoje e está ali de coração aberto.
O logradouro do casarão é discreto, para não se dizer que desilude. Porém o que chama este viajante é a cerca do solar, que desde há cinquenta anos é obra de interesse público. Ao feitor não caberá obrigação de cuidar destes jardins, nem hoje há vida para isso. Nalgum tempo sim, trabalhavam aqui jornaleiros efectivos, sempre à volta dos canteiros e das flores, em vida do conde velho. Ia à missa dos domingos debaixo da boina basca, às tardes jogava com o padre o seu xadrez. Mas o conde morreu há muitos anos e nunca mais ninguém aqui viveu. Por isso os jardins já não existem, os bancos de azulejo estão nesta ruína, e apenas sobrevivem uns arabescos de murta mal agarrados ao chão. Um tanque de pedra, imenso, deixa correr as águas que lhe chegam da serra, não sabe o que fazer delas. Mas o espanto verdadeiro é o que nos está cercando. Mesmo se ao abandono, sem cuidados nem podas, mesmo se atravancados de galhos que secaram e restos acumulados, abraçam este lugar vetustos renques de buxo e alamedas majestosas e sombrias. Cercavam os jardins como num berço, eram a jóia da casa. E o silêncio destes visitantes, enquanto nelas vagueiam fugindo às teias de aranha, comprova-lhes a majestade e a ruína. O mundo não terá nenhum sentido sem a gente que o habita, já uma vez ficou dito. Mas faltava concluir que não há glórias sem suor, seja ele de quem for.
Cá fora, saltando o muro, domina a silhueta aguda duns ciprestes, que ainda estarão aqui quando o mundo acabar. E ao lado deste cedro do Líbano já houve um campo de ténis, que é hoje um logradouro de gravilhas. Nele acampavam ciganos andarilhos que havia antigamente, sempre que aqui passavam.
Os visitantes contornam a cerca e ficam-se a olhar os campos. Os buxos derramam hirsutas cabeleiras por cima das paredes, como quem escondesse um tesouro. E afinal toda a riqueza está cá fora. Tudo quanto se vê são domínios do solar, hectares e hectares, daqui até ao espelho da barragem. As terras descem, em socalcos suaves, tão mal alimentaram bons cristãos, quando os havia. Agora estão de pasto, entregues a si mesmas, retoiçam nelas os gados pagãos da dona Rosa.
(...)
A um canto do largo, à beira da estrada, há um pequeno café, e o viajante aproveita para acomodar os seus vícios. O dono do café é um homem ainda novo, mas já tem duas filhas espigadas. São elas a atender os clientes, enquanto estão de férias. O pai vai todos os dias trabalhar à Guarda, numa fábrica de componentes automóveis, mas hoje é dia de folga. Por isso está aqui refastelado, tratado como um rei, a beber a sua cerveja. E a sorte maior vai para este viajante, que nada preza mais que uma boa conversa.
O Cláudio é um homem informado, sabe o que diz quando fala, que a vida permitiu-lhe estudar as manias do mundo e criar o seu parecer, não aconteceu a todos. Calhou entre a geração antiga, a do seu pai, que andou escravizada em França a fugir à miséria, e a geração mais moderna, criada a proteínas e ilusões. Juntou o melhor das duas. E além do trabalho na fábrica é feitor dos condes de Avillez, vai olhando por aquilo. As terras, que há muito ninguém amanha, alimentam as ovelhas de que se ocupa a mulher, a dona Rosa. Mas só vendem os borregos, quando os há. Tosquiam as chalanas por causa do calor, que a lã não tem servidão. Já o leite nem lho tiram, e os cordeiros são quem mais agradece a regalia. Há três rebanhos na aldeia, que os gados miúdos sempre valem a pena, do ponto em que se cumpram as papeladas da Europa e vençam o subsídio por cabeça. Sobram as castanhas a quem as tiver, e enquanto a doença as não levar de todo. Quanto ao resto, só metido à floresta, quem tiver dimensão sempre arranja um projecto. Mas no geral as terras são miúdas.
- E esta decadência, ao que a terra já foi?!
Na ideia do Cláudio, o principal vem da cabeça das pessoas, e ao viajante não custa acreditar. A ruína começou na debandada lá para fora, há quarenta anos acabou-se a mão-de-obra. Mas se a coisa já ia mal de carro, que a vida era uma miséria, muito pior andou de arado, porque a aldeia começou a morrer. E quando o pessoal voltou para fazer uma casa, a junta da altura foi curta de vistas. Era no tempo da outra senhora. Espaços apropriados para a construção também não abundavam, verdade seja dita, e muitos procuraram outras terras. Hoje restam aí meia dúzia de gatos-pingados, e as poucas casas de emigrantes passam o ano vazias. Mesmo nas férias, como agora, já nem todos aparecem. Os filhos só falam francês, fazem a vida por lá. Os netos nem portugueses são, nada os atrai aqui. E os velhos lá gastam a reforma a ruminar lembranças em subúrbios. Já lhes faltam as forças para meter pés ao caminho, quando chega o verão.
Estas casas de emigrantes lembram ao viajante um rei que um dia tivemos, e perdemos. É um enviesado pensamento, mas este viajante já os tem tido piores. Porque o fadário é igual. Nunca nada foi mais desejado, nada fez a um povo inteiro tanta falta. E no entanto, se o rei tivesse voltado, não serviria para nada. A estas casas aconteceu o mesmo, que nasceram para ficarem vazias. São tão desmedidas como os sonhos, e mais inúteis que os mitos. E algumas têm varandins para a rua, à altura dum pescoço. Isto fica a ruminar o viajante, mas o Cláudio já se adianta na conversa.
Um dia chegou a liberdade e as coisas pioraram, que o povo já era pouco e dividiu-se. Por interesses mesquinhos, por orgulhos, por soberbias parvas, pelo dinheiro que se recebe na junta. As diferenças políticas nunca foram nenhumas, em todas as cabeças só regula a ignorância mais escura. E o partido da câmara, que sempre foi o mesmo, explorou rivalidades, dividiu para reinar, é o que sabem fazer. Agora metade do povo evita a outra metade. E as eleições só alimentam disputas, só atiçam cambalachos, o melhor que podia acontecer à terra era acabar com elas. Mesmo assim eram precisos muitos anos para varrer estas contendas. E para algumas nem a morte.
O viajante não sabe em que há-de ficar, quantas vezes lhe parece que a liberdade é tudo, e é engano. Já leu sobre este solar, e bem gostava de visitar a cerca. Há-de ser um modo de escapar a contendas, se lá não for encontrar sarilhos novos. Felizmente o feitor tem folga hoje e está ali de coração aberto.
O logradouro do casarão é discreto, para não se dizer que desilude. Porém o que chama este viajante é a cerca do solar, que desde há cinquenta anos é obra de interesse público. Ao feitor não caberá obrigação de cuidar destes jardins, nem hoje há vida para isso. Nalgum tempo sim, trabalhavam aqui jornaleiros efectivos, sempre à volta dos canteiros e das flores, em vida do conde velho. Ia à missa dos domingos debaixo da boina basca, às tardes jogava com o padre o seu xadrez. Mas o conde morreu há muitos anos e nunca mais ninguém aqui viveu. Por isso os jardins já não existem, os bancos de azulejo estão nesta ruína, e apenas sobrevivem uns arabescos de murta mal agarrados ao chão. Um tanque de pedra, imenso, deixa correr as águas que lhe chegam da serra, não sabe o que fazer delas. Mas o espanto verdadeiro é o que nos está cercando. Mesmo se ao abandono, sem cuidados nem podas, mesmo se atravancados de galhos que secaram e restos acumulados, abraçam este lugar vetustos renques de buxo e alamedas majestosas e sombrias. Cercavam os jardins como num berço, eram a jóia da casa. E o silêncio destes visitantes, enquanto nelas vagueiam fugindo às teias de aranha, comprova-lhes a majestade e a ruína. O mundo não terá nenhum sentido sem a gente que o habita, já uma vez ficou dito. Mas faltava concluir que não há glórias sem suor, seja ele de quem for.
Cá fora, saltando o muro, domina a silhueta aguda duns ciprestes, que ainda estarão aqui quando o mundo acabar. E ao lado deste cedro do Líbano já houve um campo de ténis, que é hoje um logradouro de gravilhas. Nele acampavam ciganos andarilhos que havia antigamente, sempre que aqui passavam.
Os visitantes contornam a cerca e ficam-se a olhar os campos. Os buxos derramam hirsutas cabeleiras por cima das paredes, como quem escondesse um tesouro. E afinal toda a riqueza está cá fora. Tudo quanto se vê são domínios do solar, hectares e hectares, daqui até ao espelho da barragem. As terras descem, em socalcos suaves, tão mal alimentaram bons cristãos, quando os havia. Agora estão de pasto, entregues a si mesmas, retoiçam nelas os gados pagãos da dona Rosa.
(...)
O psicodrama das Obras Públicas
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
No passado dia 21 de Julho, teve lugar no auditório da estação do metro do Alto dos Moinhos uma mesa redonda sobre um tema candente: os investimentos previstos para as Obras Públicas. O evento foi promovido pela Adfer, a Associação dos Amigos do Caminho de Ferro. E o seu representante avisou à partida que a discussão ia ser entre economistas e engenheiros. Assim liminarmente excluído, redobrei de atenção e registei as intervenções.
Os economistas estavam em maioria, que eram três: Eduardo Catroga, António Mendonça e Victor Bento, este logo “parabenizado” como novo Conselheiro de Estado. Ao team dos engenheiros pertencia o anfitrião, Mário Lopes, da Adfer, acompanhado por Fernando Santo, o bastonário da Ordem.
Não arrisco que o debate tenha sido esclarecedor. Antes lamento que ali tivesse havido mais confusão e menos esclarecimento. Como um qualquer “Prós e Contras”, em que toda a gente parece ter razão. Encontrei argumentos da emoção à mistura com outros mais racionais, e creio que se falou em demasia na primeira pessoa, atendendo à circunstância. Ficou no ar a suspeita de que há “culpados” de precipitação em algumas decisões, mas não foram nomeados. Foi particularmente lamentada a extinção do Conselho Superior de Obras Públicas.
Disse-se que o TGV para Madrid foi negociado à pressa. Que ele interessa sobretudo aos espanhóis, correndo nós o risco de passarmos a ser mais uma região autónoma de Espanha. Que o mesmo não será rentável, tendo em vista a escassa utilização da auto-estrada A6. E que a situação económica do país não vai permitir a sua construção. Diz Catroga, e logo Bento reforça:
- Não se construa, pelo menos para já!
Logo discorda Mendonça:
- Pois construa-se! É uma oportunidade a não perder, porque o pior é ficarmos parados! Vejam só o que teria sido, se não se tivesse construído a ponte 25 de Abril! Se vamos deixar aos nossos filhos o passivo, há que deixar-lhes também os activos! Olhem para o caso da Irlanda, não quis fazer auto-estradas, investiu na tecnologia e na educação, e agora está pior que nós. E ainda por cima não tem obra feita.
Uma voz na assistência chama à colação a “falácia” do novo aeroporto, e logo explana o conceito: é uma mentira apresentada como se fosse uma verdade. Quando a verdade é que a procura de passageiros está a diminuir.
- Aguente-se a Portela, temos tempo! Façam-se os estudos de pormenor para evitar derrapagens nos custos! Sejamos realistas, se o novo terminal de Barajas custou 8 mil milhões, como é que se quer fazer todo um novo aeroporto com 3 mil milhões?!
- Nada disso, haja juízo, o aeroporto é a nossa janela para o mundo, pensemos no turismo!
- Faça-se então! – diz a Adfer - mas corrija-se o absurdo da TTT (terceira travessia do Tejo) para o Barreiro! Lance-se para o Montijo, mais directa, mais barata, mais elegante, e leve-se a linha do Norte pela margem esquerda até alturas de Santarém!
Algum consenso chegou quanto às novas auto-estradas: acabar com exageros, e considerar apenas as excepções. E, se é verdade que o plano rodoviário só está cumprido em 60%, também é verdade que a dívida externa, de 60% do PIB há dois anos, ronda agora os 100%.
Consenso existiu também no mais simples e trivial: as exportações portuguesas para a Europa além Pirenéus, através da ferrovia, valem zero, por causa da bitola. Mude-se pois a bitola para a da rede europeia, refaça-se a ferrovia natural para a Europa pela Beira Alta e Vilar Formoso, e negoceie-se com urgência a continuação espanhola, entre Fuentes e Valladolid. Porém esta questão parece arredada da discussão, nas mais altas instâncias governamentais.
Fique ainda registado um alerta do bastonário da Ordem dos Engenheiros: Portugal importa 85% da energia que consome, e 75% dos bens alimentares que chegam às nossas mesas, uma vez que se destruiu o sistema produtivo no sector agrícola e nas pescas. Estamos falidos e pobres, mas temos ambições de ricos, parecia querer dizer. Foi o momento mais alto da sessão.
O professor Catroga ensinou ainda que Portugal apenas teve uma balança comercial positiva em 1941, durante a guerra. Que a década terminada em 2007 foi, em termos de crescimento, a pior dos últimos 80 anos. E que só em 2014, na melhor das hipóteses, o nosso PIB vai regressar aos valores de 2007. No meio da discussão entre dois economistas, que avaliavam o impacto futuro das Obras Públicas no PIB, falava um de 0,1%, enquanto o outro subia a parada para 8,3%. Aqui fica o registo, apenas para ilustrar a ordem de grandeza da baralhação.
Estas coisas só acontecem assim, concluo eu, porque falta às elites dirigentes uma estratégia para o país. Uma linha geral, um rumo, uma orientação. Aos políticos apenas preocupam as próximas eleições. Os economistas e engenheiros fazem lembrar autistas centrados no umbigo. Só faltou a agudeza retórica dos juristas.
Parece que aos restantes cidadãos sobra apenas o aviso de Einstein: se querem resolver um problema, não confiem a solução àqueles que o criaram.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
No passado dia 21 de Julho, teve lugar no auditório da estação do metro do Alto dos Moinhos uma mesa redonda sobre um tema candente: os investimentos previstos para as Obras Públicas. O evento foi promovido pela Adfer, a Associação dos Amigos do Caminho de Ferro. E o seu representante avisou à partida que a discussão ia ser entre economistas e engenheiros. Assim liminarmente excluído, redobrei de atenção e registei as intervenções.
Os economistas estavam em maioria, que eram três: Eduardo Catroga, António Mendonça e Victor Bento, este logo “parabenizado” como novo Conselheiro de Estado. Ao team dos engenheiros pertencia o anfitrião, Mário Lopes, da Adfer, acompanhado por Fernando Santo, o bastonário da Ordem.
Não arrisco que o debate tenha sido esclarecedor. Antes lamento que ali tivesse havido mais confusão e menos esclarecimento. Como um qualquer “Prós e Contras”, em que toda a gente parece ter razão. Encontrei argumentos da emoção à mistura com outros mais racionais, e creio que se falou em demasia na primeira pessoa, atendendo à circunstância. Ficou no ar a suspeita de que há “culpados” de precipitação em algumas decisões, mas não foram nomeados. Foi particularmente lamentada a extinção do Conselho Superior de Obras Públicas.
Disse-se que o TGV para Madrid foi negociado à pressa. Que ele interessa sobretudo aos espanhóis, correndo nós o risco de passarmos a ser mais uma região autónoma de Espanha. Que o mesmo não será rentável, tendo em vista a escassa utilização da auto-estrada A6. E que a situação económica do país não vai permitir a sua construção. Diz Catroga, e logo Bento reforça:
- Não se construa, pelo menos para já!
Logo discorda Mendonça:
- Pois construa-se! É uma oportunidade a não perder, porque o pior é ficarmos parados! Vejam só o que teria sido, se não se tivesse construído a ponte 25 de Abril! Se vamos deixar aos nossos filhos o passivo, há que deixar-lhes também os activos! Olhem para o caso da Irlanda, não quis fazer auto-estradas, investiu na tecnologia e na educação, e agora está pior que nós. E ainda por cima não tem obra feita.
Uma voz na assistência chama à colação a “falácia” do novo aeroporto, e logo explana o conceito: é uma mentira apresentada como se fosse uma verdade. Quando a verdade é que a procura de passageiros está a diminuir.
- Aguente-se a Portela, temos tempo! Façam-se os estudos de pormenor para evitar derrapagens nos custos! Sejamos realistas, se o novo terminal de Barajas custou 8 mil milhões, como é que se quer fazer todo um novo aeroporto com 3 mil milhões?!
- Nada disso, haja juízo, o aeroporto é a nossa janela para o mundo, pensemos no turismo!
- Faça-se então! – diz a Adfer - mas corrija-se o absurdo da TTT (terceira travessia do Tejo) para o Barreiro! Lance-se para o Montijo, mais directa, mais barata, mais elegante, e leve-se a linha do Norte pela margem esquerda até alturas de Santarém!
Algum consenso chegou quanto às novas auto-estradas: acabar com exageros, e considerar apenas as excepções. E, se é verdade que o plano rodoviário só está cumprido em 60%, também é verdade que a dívida externa, de 60% do PIB há dois anos, ronda agora os 100%.
Consenso existiu também no mais simples e trivial: as exportações portuguesas para a Europa além Pirenéus, através da ferrovia, valem zero, por causa da bitola. Mude-se pois a bitola para a da rede europeia, refaça-se a ferrovia natural para a Europa pela Beira Alta e Vilar Formoso, e negoceie-se com urgência a continuação espanhola, entre Fuentes e Valladolid. Porém esta questão parece arredada da discussão, nas mais altas instâncias governamentais.
Fique ainda registado um alerta do bastonário da Ordem dos Engenheiros: Portugal importa 85% da energia que consome, e 75% dos bens alimentares que chegam às nossas mesas, uma vez que se destruiu o sistema produtivo no sector agrícola e nas pescas. Estamos falidos e pobres, mas temos ambições de ricos, parecia querer dizer. Foi o momento mais alto da sessão.
O professor Catroga ensinou ainda que Portugal apenas teve uma balança comercial positiva em 1941, durante a guerra. Que a década terminada em 2007 foi, em termos de crescimento, a pior dos últimos 80 anos. E que só em 2014, na melhor das hipóteses, o nosso PIB vai regressar aos valores de 2007. No meio da discussão entre dois economistas, que avaliavam o impacto futuro das Obras Públicas no PIB, falava um de 0,1%, enquanto o outro subia a parada para 8,3%. Aqui fica o registo, apenas para ilustrar a ordem de grandeza da baralhação.
Estas coisas só acontecem assim, concluo eu, porque falta às elites dirigentes uma estratégia para o país. Uma linha geral, um rumo, uma orientação. Aos políticos apenas preocupam as próximas eleições. Os economistas e engenheiros fazem lembrar autistas centrados no umbigo. Só faltou a agudeza retórica dos juristas.
Parece que aos restantes cidadãos sobra apenas o aviso de Einstein: se querem resolver um problema, não confiem a solução àqueles que o criaram.
Enxurrada
Quando António Guterres tomou posse do seu primeiro governo, em 95, não perdeu tempo até ao erro primeiro: suspender a barragem do Côa, por causa das gravuras. Não é verdade que até havia uns grupos de adolescentes, genuínos porta-vozes da opinião popular, a arrastar as multidões e a defender a cultura, e a protestar que os auroques não sabiam nadar?
A EDP recebeu 20 milhões, daqueles dos antigos, e os cavalinhos ficaram muito contentes. Mas a febre da cultura, e mais ainda as bebedeiras dela, não ficaram por aí. É que havia umas gravuras a jusante da obra, há muito tempo afogadas abaixo da linha de água. Urgia uma operação de salvamento.
Foi assim que veio a ideia de fazer, a jusante, a ensecadeira. Rebaixava-se em dez metros o nível das águas e já podiam respirar os cavalinhos, já podiam respirar os visionários. E até o povo eleito atravessava outra vez o mar vermelho.
Mas tudo isso custava muito dinheiro, e houve alguém que se viu mal no retrato. Os cantores adolescentes já tinham novas cantigas, e a ensecadeira nunca saiu do papel.
O vale do Côa lá ficou escalavrado. A EDP ficou à espera que lhe caísse nas mãos o comboio do Tua. E a cultura nacional passou a mão pela barriga, e suspirou satisfeita.
A EDP recebeu 20 milhões, daqueles dos antigos, e os cavalinhos ficaram muito contentes. Mas a febre da cultura, e mais ainda as bebedeiras dela, não ficaram por aí. É que havia umas gravuras a jusante da obra, há muito tempo afogadas abaixo da linha de água. Urgia uma operação de salvamento.
Foi assim que veio a ideia de fazer, a jusante, a ensecadeira. Rebaixava-se em dez metros o nível das águas e já podiam respirar os cavalinhos, já podiam respirar os visionários. E até o povo eleito atravessava outra vez o mar vermelho.
Mas tudo isso custava muito dinheiro, e houve alguém que se viu mal no retrato. Os cantores adolescentes já tinham novas cantigas, e a ensecadeira nunca saiu do papel.
O vale do Côa lá ficou escalavrado. A EDP ficou à espera que lhe caísse nas mãos o comboio do Tua. E a cultura nacional passou a mão pela barriga, e suspirou satisfeita.
No ano que passou, catorze mil visitantes foram ver as gravuras rupestres. E os cicerones de apoio passaram a operar a meio tempo.
O museu do Côa pensaram-no para a falésia, mas a verdade é que não cabia lá.
Foram fazê-lo ali no cimo dum cabeço, a mirar ao fundo o rio Douro. Quando calhar vai ser inaugurado.
Estou em pulgas por saber o que é que a inteligência das elites, afogada nos caldos desta cultura, vai incensar ali dentro. Bom era rebanhar lá os auroques, e retomar a barragem. Aquilo que tem que ser tem muita força, e os indígenas locais não esperam outra coisa. Mas o comboio do Tua é que já foi na enxurrada.
Estou em pulgas por saber o que é que a inteligência das elites, afogada nos caldos desta cultura, vai incensar ali dentro. Bom era rebanhar lá os auroques, e retomar a barragem. Aquilo que tem que ser tem muita força, e os indígenas locais não esperam outra coisa. Mas o comboio do Tua é que já foi na enxurrada.
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Portugalmente (40)
(...)
A um canto do largo, à beira da estrada, há um pequeno café, e o viajante aproveita para acomodar os seus vícios. O dono do café é um homem ainda novo, mas já tem duas filhas espigadas. São elas a atender os clientes, enquanto estão de férias. O pai vai todos os dias trabalhar à Guarda, numa fábrica de componentes automóveis, mas hoje é dia de folga. Por isso está aqui refastelado, tratado como um rei, a beber a sua cerveja. E a sorte maior vai para este viajante, que nada preza mais que uma boa conversa.
O Cláudio é um homem informado, sabe o que diz quando fala, que a vida permitiu-lhe estudar as manias do mundo e criar o seu parecer, não aconteceu a todos. Calhou entre a geração antiga, a do seu pai, que andou escravizada em França a fugir à miséria, e a geração mais moderna, criada a proteínas e ilusões. Juntou o melhor das duas. E além do trabalho na fábrica é feitor dos condes de Avillez, vai olhando por aquilo. As terras, que há muito ninguém amanha, alimentam as ovelhas de que se ocupa a mulher, a dona Rosa. Mas só vendem os borregos, quando os há. Tosquiam as chalanas por causa do calor, que a lã não tem servidão. Já o leite nem lho tiram, e os cordeiros são quem mais agradece a regalia. Há três rebanhos na aldeia, que os gados miúdos sempre valem a pena, do ponto em que se cumpram as papeladas da Europa e vençam o subsídio por cabeça. Sobram as castanhas a quem as tiver, e enquanto a doença as não levar de todo. Quanto ao resto, só metido à floresta, quem tiver dimensão sempre arranja um projecto. Mas no geral as terras são miúdas.
- E esta decadência, ao que a terra já foi?!
Na ideia do Cláudio, o principal vem da cabeça das pessoas, e ao viajante não custa acreditar. A ruína começou na debandada lá para fora, há quarenta anos acabou-se a mão-de-obra. Mas se a coisa já ia mal de carro, que a vida era uma miséria, muito pior andou depois, de arado, porque a aldeia começou a morrer. E quando o pessoal voltou para fazer uma casa, a junta da altura foi curta de vistas. Era no tempo da outra senhora. Espaços apropriados para a construção também não abundavam, verdade seja dita, e muitos procuraram outras terras. Hoje restam aí meia dúzia de gatos-pingados, e as poucas casas de emigrantes passam o ano vazias. Mesmo nas férias, como agora, já nem todos aparecem. Os filhos só falam francês, fazem a vida por lá. Os netos nem portugueses são, nada os atrai aqui. E os velhos lá gastam a reforma a ruminar lembranças em subúrbios. Já lhes faltam as forças para meter pés ao caminho, quando chega o verão.
Estas casas de emigrantes lembram ao viajante um rei que um dia tivemos, e perdemos. É um enviesado pensamento, mas este viajante já os tem tido piores. Porque o fadário é igual. Nunca nada foi mais desejado, nada fez a um povo inteiro tanta falta. E no entanto, se o rei tivesse voltado, não serviria para nada. A estas casas aconteceu o mesmo, que nasceram para ficarem vazias. São tão desmedidas como os sonhos, e mais inúteis que os mitos. E algumas têm varandins para a rua, à altura dum pescoço. Isto fica a ruminar o viajante, mas o Cláudio já se adianta na conversa.
Um dia chegou a liberdade e as coisas pioraram, que o povo já era pouco e dividiu-se. Por interesses mesquinhos, por orgulhos, por soberbias parvas, pelo dinheiro que se recebe na junta. As diferenças políticas nunca foram nenhumas, em todas as cabeças só regula a ignorância mais escura. E o partido da câmara, que sempre foi o mesmo, explorou rivalidades, dividiu para reinar, é o que sabem fazer. Agora metade do povo evita a outra metade. E as eleições só alimentam disputas, só atiçam cambalachos, o melhor que podia acontecer à terra era acabar com elas. Mesmo assim eram precisos muitos anos para varrer estas contendas. E para algumas nem a morte.
(...)
A um canto do largo, à beira da estrada, há um pequeno café, e o viajante aproveita para acomodar os seus vícios. O dono do café é um homem ainda novo, mas já tem duas filhas espigadas. São elas a atender os clientes, enquanto estão de férias. O pai vai todos os dias trabalhar à Guarda, numa fábrica de componentes automóveis, mas hoje é dia de folga. Por isso está aqui refastelado, tratado como um rei, a beber a sua cerveja. E a sorte maior vai para este viajante, que nada preza mais que uma boa conversa.
O Cláudio é um homem informado, sabe o que diz quando fala, que a vida permitiu-lhe estudar as manias do mundo e criar o seu parecer, não aconteceu a todos. Calhou entre a geração antiga, a do seu pai, que andou escravizada em França a fugir à miséria, e a geração mais moderna, criada a proteínas e ilusões. Juntou o melhor das duas. E além do trabalho na fábrica é feitor dos condes de Avillez, vai olhando por aquilo. As terras, que há muito ninguém amanha, alimentam as ovelhas de que se ocupa a mulher, a dona Rosa. Mas só vendem os borregos, quando os há. Tosquiam as chalanas por causa do calor, que a lã não tem servidão. Já o leite nem lho tiram, e os cordeiros são quem mais agradece a regalia. Há três rebanhos na aldeia, que os gados miúdos sempre valem a pena, do ponto em que se cumpram as papeladas da Europa e vençam o subsídio por cabeça. Sobram as castanhas a quem as tiver, e enquanto a doença as não levar de todo. Quanto ao resto, só metido à floresta, quem tiver dimensão sempre arranja um projecto. Mas no geral as terras são miúdas.
- E esta decadência, ao que a terra já foi?!
Na ideia do Cláudio, o principal vem da cabeça das pessoas, e ao viajante não custa acreditar. A ruína começou na debandada lá para fora, há quarenta anos acabou-se a mão-de-obra. Mas se a coisa já ia mal de carro, que a vida era uma miséria, muito pior andou depois, de arado, porque a aldeia começou a morrer. E quando o pessoal voltou para fazer uma casa, a junta da altura foi curta de vistas. Era no tempo da outra senhora. Espaços apropriados para a construção também não abundavam, verdade seja dita, e muitos procuraram outras terras. Hoje restam aí meia dúzia de gatos-pingados, e as poucas casas de emigrantes passam o ano vazias. Mesmo nas férias, como agora, já nem todos aparecem. Os filhos só falam francês, fazem a vida por lá. Os netos nem portugueses são, nada os atrai aqui. E os velhos lá gastam a reforma a ruminar lembranças em subúrbios. Já lhes faltam as forças para meter pés ao caminho, quando chega o verão.
Estas casas de emigrantes lembram ao viajante um rei que um dia tivemos, e perdemos. É um enviesado pensamento, mas este viajante já os tem tido piores. Porque o fadário é igual. Nunca nada foi mais desejado, nada fez a um povo inteiro tanta falta. E no entanto, se o rei tivesse voltado, não serviria para nada. A estas casas aconteceu o mesmo, que nasceram para ficarem vazias. São tão desmedidas como os sonhos, e mais inúteis que os mitos. E algumas têm varandins para a rua, à altura dum pescoço. Isto fica a ruminar o viajante, mas o Cláudio já se adianta na conversa.
Um dia chegou a liberdade e as coisas pioraram, que o povo já era pouco e dividiu-se. Por interesses mesquinhos, por orgulhos, por soberbias parvas, pelo dinheiro que se recebe na junta. As diferenças políticas nunca foram nenhumas, em todas as cabeças só regula a ignorância mais escura. E o partido da câmara, que sempre foi o mesmo, explorou rivalidades, dividiu para reinar, é o que sabem fazer. Agora metade do povo evita a outra metade. E as eleições só alimentam disputas, só atiçam cambalachos, o melhor que podia acontecer à terra era acabar com elas. Mesmo assim eram precisos muitos anos para varrer estas contendas. E para algumas nem a morte.
(...)
Atrasados mentais
D. Nuno Álvares Pereira, já beato há muitos anos, lá foi graduado em santo. Que os santeiros do Vaticano não perdem a pitada. Não lhes estremece o peito, se a crise fecha uma fábrica onde se ganha o pão. Mas fechar uma olaria onde se fabricam santos, isso não.
Aproveitaram o olho da dona Guilhermina, que um salpico de óleo molestou quando fritava o sável, ali à beira do Tejo. Deram-no como milagre e arrumaram o caso. E D. Nuno, que já era do panteão dos heróis, acumula agora com o dos santos.
Dá-se o caso que, com este envolvimento, os santeiros do Vaticano atingiram de flanco os castelhanos, ultimamente relapsos e muito contumazes às decretais de Roma. Nada melhor que um santo lusitano, e logo este, só para lhes meter o ferro, honni soit... Mas deixemos de lado o pormenor, não vá dizer-se que fazemos processos de intenção, a quem nas intenções e nos processos delas nos mete a nós num chinelo.
Logo exultaram os sacristães patriotas, que trazem sempre a pátria nas palminhas. Com mais unção sacrificam ao mito que à verdade, porque o mito lhes traz mais dividendo.
Que o D. Nuno inventou um quadrado e a sua táctica, com que havia de arrasar os castelhanos. Ora o quadrado já existia há muito, talvez desde os começos do mundo. E a táctica trouxeram-na os ingleses, e um uso novo da cavalaria, e os abatises, e os fossos, e as covas-de-lobo. Tinham-nos aprendido nas guerras da Escócia, e usaram-nos em Crécy, e em Poitiers, e mais tarde em Azincourt, sempre que lhes vinha a jeito esmagar os franceses.
O próprio S. Jorge era um alienígena, que veio de Inglaterra a servir de patrono, a opor-se ao Santiago Mata-Mouros. Mas a febre dos sacristães levou-os a exacerbar o desapego do herói aos bens terrenos. Esquecem que herói e santo foram ao mesmo tempo, e na mesmíssima pessoa, refinados chantagistas. Ou el-rei satisfazia as exigências de feudos e poder, ou lançavam ao tapete a toalha patriótica. A coisa foi de tal monta, que o príncipe sucessor acabou a lastimar que o pai lhe deixasse apenas as carreteiras das cabras. Que o reino onde elas pastavam tinha donos.
Estão muito bem uns para os outros! Os oleiros do Vaticano, que ganham bem a vida fabricando santos. Os aldrabões idólatras indígenas, cujos mitos arredondam dividendos. E D. Nuno, que afinal foi graduado. É graduação um tanto pós-moderna, mas não deixa de contar para o currículo.
Pior vai só à dona Guilhermina, se um pingo de óleo lhe for ao outro olho, quando repetir o sável. É que o D. Nuno agora está servido, já não precisa de gastar mais tempo com atrasados mentais.
Aproveitaram o olho da dona Guilhermina, que um salpico de óleo molestou quando fritava o sável, ali à beira do Tejo. Deram-no como milagre e arrumaram o caso. E D. Nuno, que já era do panteão dos heróis, acumula agora com o dos santos.
Dá-se o caso que, com este envolvimento, os santeiros do Vaticano atingiram de flanco os castelhanos, ultimamente relapsos e muito contumazes às decretais de Roma. Nada melhor que um santo lusitano, e logo este, só para lhes meter o ferro, honni soit... Mas deixemos de lado o pormenor, não vá dizer-se que fazemos processos de intenção, a quem nas intenções e nos processos delas nos mete a nós num chinelo.
Logo exultaram os sacristães patriotas, que trazem sempre a pátria nas palminhas. Com mais unção sacrificam ao mito que à verdade, porque o mito lhes traz mais dividendo.
Que o D. Nuno inventou um quadrado e a sua táctica, com que havia de arrasar os castelhanos. Ora o quadrado já existia há muito, talvez desde os começos do mundo. E a táctica trouxeram-na os ingleses, e um uso novo da cavalaria, e os abatises, e os fossos, e as covas-de-lobo. Tinham-nos aprendido nas guerras da Escócia, e usaram-nos em Crécy, e em Poitiers, e mais tarde em Azincourt, sempre que lhes vinha a jeito esmagar os franceses.
O próprio S. Jorge era um alienígena, que veio de Inglaterra a servir de patrono, a opor-se ao Santiago Mata-Mouros. Mas a febre dos sacristães levou-os a exacerbar o desapego do herói aos bens terrenos. Esquecem que herói e santo foram ao mesmo tempo, e na mesmíssima pessoa, refinados chantagistas. Ou el-rei satisfazia as exigências de feudos e poder, ou lançavam ao tapete a toalha patriótica. A coisa foi de tal monta, que o príncipe sucessor acabou a lastimar que o pai lhe deixasse apenas as carreteiras das cabras. Que o reino onde elas pastavam tinha donos.
Estão muito bem uns para os outros! Os oleiros do Vaticano, que ganham bem a vida fabricando santos. Os aldrabões idólatras indígenas, cujos mitos arredondam dividendos. E D. Nuno, que afinal foi graduado. É graduação um tanto pós-moderna, mas não deixa de contar para o currículo.
Pior vai só à dona Guilhermina, se um pingo de óleo lhe for ao outro olho, quando repetir o sável. É que o D. Nuno agora está servido, já não precisa de gastar mais tempo com atrasados mentais.
terça-feira, 21 de julho de 2009
O pólo aglutinador
Dizem do Porto que é a segunda cidade do país, a capital do Norte. E que há-de ser mais do que isso! Quem lá chega, vindo de autocarro, vai parar à garagem Atlântico. Passa a duque de Loulé, onde metade das janelas já foram entaipadas. Fechará os olhos na Alexandre Herculano, se os perigos de derrocada o assustarem. E quando voltar a abri-los já parou no destino.
A garagem Atlântico é o vestíbulo de entrada, para quem ao Porto chega deste modo. E algum motivo há-de haver, para que a cidade receba o visitante num galpão deste calibre. É uma gruta pré-histórica a cheirar a gasóleo, onde só se recomenda entrar de máscara, com precauções de espeleólogo. A armação do tecto faz lembrar instalações industriais dum tempo muito antigo. É feita em vigas de ferro, cobertas de ferrugem, já vem do tempo da guerra. Os motoristas fazem o que podem para arrumar lá dentro os paquidermes. E o viajante há-de encontrar saída num corredor esconso, ao longo dum tabique de contraplacado, que o protege, mesmo assim, duma trombada iminente.
As forças vivas do Porto nunca foram de excursão a Vigo. Nunca visitaram Salamanca, nem outras aldeias espanholas. Por isso não se envergonham desta decadência. Contam-se nelas empresários míticos, criadores avulsos de riqueza, e autarcas que não desistem de fazer desta cidade o pólo aglutinador do Noroeste Peninsular. Para isso cultivam coutadas de excelência.
Mal chega Julho, afadigam-se a montar o circo da Boavista. Privatizam a avenida, interditam acessos a moradias, metem num inferno os moradores. Riscam no chão sinalefas transitórias, protegem com pneus velhos as curvas mais expostas, montam bancadas portáteis na recta da meta. Aos eleitos distribuem vouchers que dão acesso ao paddock. E abrem à populaça as bilheteiras, entontecida pelo roncar das máquinas, pela fumaça dos travões, pelos ratés dos motores, do tempo em que os motores eram a sério.
Tudo isto para alavancar a imagem da cidade, e dar que falar ao mundo. E porque o seu presidente tem saudades da infância, e padece de incuráveis nostalgias. Ah, os velhos turismos clássicos!
Alguns idealistas embirrentos insistem que esta cidade anda a merecer melhor sorte. Não se dão conta de que o senhor Presidente caminha para as eleições com 60% de votos prometidos.
A garagem Atlântico é o vestíbulo de entrada, para quem ao Porto chega deste modo. E algum motivo há-de haver, para que a cidade receba o visitante num galpão deste calibre. É uma gruta pré-histórica a cheirar a gasóleo, onde só se recomenda entrar de máscara, com precauções de espeleólogo. A armação do tecto faz lembrar instalações industriais dum tempo muito antigo. É feita em vigas de ferro, cobertas de ferrugem, já vem do tempo da guerra. Os motoristas fazem o que podem para arrumar lá dentro os paquidermes. E o viajante há-de encontrar saída num corredor esconso, ao longo dum tabique de contraplacado, que o protege, mesmo assim, duma trombada iminente.
As forças vivas do Porto nunca foram de excursão a Vigo. Nunca visitaram Salamanca, nem outras aldeias espanholas. Por isso não se envergonham desta decadência. Contam-se nelas empresários míticos, criadores avulsos de riqueza, e autarcas que não desistem de fazer desta cidade o pólo aglutinador do Noroeste Peninsular. Para isso cultivam coutadas de excelência.
Mal chega Julho, afadigam-se a montar o circo da Boavista. Privatizam a avenida, interditam acessos a moradias, metem num inferno os moradores. Riscam no chão sinalefas transitórias, protegem com pneus velhos as curvas mais expostas, montam bancadas portáteis na recta da meta. Aos eleitos distribuem vouchers que dão acesso ao paddock. E abrem à populaça as bilheteiras, entontecida pelo roncar das máquinas, pela fumaça dos travões, pelos ratés dos motores, do tempo em que os motores eram a sério.
Tudo isto para alavancar a imagem da cidade, e dar que falar ao mundo. E porque o seu presidente tem saudades da infância, e padece de incuráveis nostalgias. Ah, os velhos turismos clássicos!
Alguns idealistas embirrentos insistem que esta cidade anda a merecer melhor sorte. Não se dão conta de que o senhor Presidente caminha para as eleições com 60% de votos prometidos.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Batalhas navais
Porque há limites para tudo, o Oliveira Costa lá saiu do porão. Apareceu no convés com ar de lazarillo, de parvo vicentino, de palhacito pobre, de faz-tudo. E tem toda a razão. Um marinheiro sozinho não põe uma nau a pique.
O Dias Loureiro atira-se borda fora, não vá alguém sugerir que se utilizou da nau para escapar ao naufrágio. E tem toda a razão. Não há náufragos sem barcos.
O Cavaco fica a palitar os dentes no castelo da popa, a lembrar uns dividendos de favor, que entretanto estão desaparecidos. É certo que já lhe cheira a queimado, mas não há incêndio à vista. E tem toda a razão. Às vezes é só desleixo na cozinha.
O Joaquim Coimbra e a restante marinhagem afivelam coletes, arreiam à cautela as baleeiras. E têm toda a razão. Não há melhor maneira de controlar os danos.
O Arlindo Cunha é apanhado na rede e constituído arguido. Só porta-aviões do cavaquismo já vão três! Entre alijar a carga e vomitar as tripas, derivado ao balanço da onda, o melhor será manter a agulha. E tem toda a razão. O Verão aqueceu finalmente e o pessoal quer é praia.
Os grumetes de faxina vão baldeando o convés, areiam os cromados, desvalorizam o caso. E têm toda a razão. O que mais há são barcos que metem água.
Em segredo fazem figas à Senhora dos Navegantes, na fé de que a borrasca há-de passar. O governo nacionalizou o banco e evitou as maiores perdas. E embarcadiços fiéis da Dona Branca é o que não falta lá por casa. De forma que todos têm razão. Não ia ser agora, com séculos de experiência, que a bruxa da justiça tirava a venda dos olhos!
O Dias Loureiro atira-se borda fora, não vá alguém sugerir que se utilizou da nau para escapar ao naufrágio. E tem toda a razão. Não há náufragos sem barcos.
O Cavaco fica a palitar os dentes no castelo da popa, a lembrar uns dividendos de favor, que entretanto estão desaparecidos. É certo que já lhe cheira a queimado, mas não há incêndio à vista. E tem toda a razão. Às vezes é só desleixo na cozinha.
O Joaquim Coimbra e a restante marinhagem afivelam coletes, arreiam à cautela as baleeiras. E têm toda a razão. Não há melhor maneira de controlar os danos.
O Arlindo Cunha é apanhado na rede e constituído arguido. Só porta-aviões do cavaquismo já vão três! Entre alijar a carga e vomitar as tripas, derivado ao balanço da onda, o melhor será manter a agulha. E tem toda a razão. O Verão aqueceu finalmente e o pessoal quer é praia.
Os grumetes de faxina vão baldeando o convés, areiam os cromados, desvalorizam o caso. E têm toda a razão. O que mais há são barcos que metem água.
Em segredo fazem figas à Senhora dos Navegantes, na fé de que a borrasca há-de passar. O governo nacionalizou o banco e evitou as maiores perdas. E embarcadiços fiéis da Dona Branca é o que não falta lá por casa. De forma que todos têm razão. Não ia ser agora, com séculos de experiência, que a bruxa da justiça tirava a venda dos olhos!
Portugalmente (39)
(...)
O viajante guarda estes pensamentos e põe-se a descer a rua, onde a vida, outra vez caprichosa, mistura o bom ao pior sem mais explicações. Cercado de pardieiros encontra o viajante um solar seiscentista, que foi duns vagos condes de Leiria, honraria liberal dum rei assassinado. E alguns artistas, montados nuns andaimes, andam atarefados a compor-lhe a fachada. Já lavaram a pátina ao brasão, e querem transformá-lo numa unidade de turismo rural.
O casarão está ali desde os começos do séc. XVII, e há muitos anos já viveram nele os capitães-mores do castelo de Moreira. Uma capela da Senhora da Guia, engastada no solar, foi tulha de cereais durante muito tempo, adianta um dos artistas, mais faceto. Mas bem remido estará o sacrilégio, que a um lado se garantia assim a frescura do grão, e a outro se mantinha em respeito a ousada rataria.
Animado com tão frescas louçanias, chega o viajante ao largo dos condes de Avillez, conforme diz uma placa. Ou então à aldeia nova, no linguajar do povo. A toponímia antiga não costuma enganar, mas aqui não acerta o viajante como há-de fiar-se nela. O solar dos condes avulta logo ali, ao cruzar do ribeiro, e é construção severa, ao modo antigo. Não fora tão longe o mar, e o viajante acredita que já lhe sobra idade para ter acompanhado as despedidas do Gama, vai lá uma eternidade.
A gente moderna olha para estas coisas, vai dizer que tiveram toda a vida a cara que hoje mostram, e não é bem assim. Pois já quando partiu a pelejar em Ceuta, aos anos que isso foi, era o fidalgo João de Castro segundo conde em Monsanto e dono deste casal, que mais tarde vendeu. Nesse tempo era coisa discreta, uma quinta singela à beira deste ribeiro, uns domínios de cultivo. Seguiu-se uma dinastia de morgados, que cem anos depois construíram a capela. E só o rei magnânimo, duzentos anos mais tarde, mandou passar brasão de armas e outorgar ao senhorio fidalguia de solar. Que a história tem precedências e patentes, tem cortesias e diuturnidades. Viveram aqui viscondes, renovou-se a frontaria, construiu-se o escadório segundo os ares do tempo. E donde já partira um padre jesuíta, que andou lá pela China a levar a boa nova, mais fácil saiu daqui um coronel miguelista e um juiz que foi bravo do Mindelo. Só depois, por casamento, chegaram os condes de Avillez.
Ora a aldeia é mais velha que o solar, mais velha que a velha quinta, pois nada se fez no mundo sem haver povo a tocá-lo, como é geralmente sabido. Não pode agora informar o viajante qual o núcleo original do povoado. Mas só quando este solar se construiu é que a aldeia se foi aproximando. Nasceu então uma aldeia nova, a acrescentar à irmã. E a toponímia antiga voltou a ter razão.
Esta capela da Senhora da Trindade, com uma pirâmide em pedra a enformar um telhado que remata em chapéu cardinalício, data de 1547, se a era bater certa. E a parte fundeira do solar, a mais virada ao sol e à paisagem, juntamente com a azenha de água que lhe fica encostada, estão a ser engolidas pela vegetação. Fica a escadaria monumental, que dá acesso ao salão nobre onde era a sala do Preto, e a já falada capela da Trindade, a resistir ao tempo.
(...)
O viajante guarda estes pensamentos e põe-se a descer a rua, onde a vida, outra vez caprichosa, mistura o bom ao pior sem mais explicações. Cercado de pardieiros encontra o viajante um solar seiscentista, que foi duns vagos condes de Leiria, honraria liberal dum rei assassinado. E alguns artistas, montados nuns andaimes, andam atarefados a compor-lhe a fachada. Já lavaram a pátina ao brasão, e querem transformá-lo numa unidade de turismo rural.
O casarão está ali desde os começos do séc. XVII, e há muitos anos já viveram nele os capitães-mores do castelo de Moreira. Uma capela da Senhora da Guia, engastada no solar, foi tulha de cereais durante muito tempo, adianta um dos artistas, mais faceto. Mas bem remido estará o sacrilégio, que a um lado se garantia assim a frescura do grão, e a outro se mantinha em respeito a ousada rataria.
Animado com tão frescas louçanias, chega o viajante ao largo dos condes de Avillez, conforme diz uma placa. Ou então à aldeia nova, no linguajar do povo. A toponímia antiga não costuma enganar, mas aqui não acerta o viajante como há-de fiar-se nela. O solar dos condes avulta logo ali, ao cruzar do ribeiro, e é construção severa, ao modo antigo. Não fora tão longe o mar, e o viajante acredita que já lhe sobra idade para ter acompanhado as despedidas do Gama, vai lá uma eternidade.
A gente moderna olha para estas coisas, vai dizer que tiveram toda a vida a cara que hoje mostram, e não é bem assim. Pois já quando partiu a pelejar em Ceuta, aos anos que isso foi, era o fidalgo João de Castro segundo conde em Monsanto e dono deste casal, que mais tarde vendeu. Nesse tempo era coisa discreta, uma quinta singela à beira deste ribeiro, uns domínios de cultivo. Seguiu-se uma dinastia de morgados, que cem anos depois construíram a capela. E só o rei magnânimo, duzentos anos mais tarde, mandou passar brasão de armas e outorgar ao senhorio fidalguia de solar. Que a história tem precedências e patentes, tem cortesias e diuturnidades. Viveram aqui viscondes, renovou-se a frontaria, construiu-se o escadório segundo os ares do tempo. E donde já partira um padre jesuíta, que andou lá pela China a levar a boa nova, mais fácil saiu daqui um coronel miguelista e um juiz que foi bravo do Mindelo. Só depois, por casamento, chegaram os condes de Avillez.
Ora a aldeia é mais velha que o solar, mais velha que a velha quinta, pois nada se fez no mundo sem haver povo a tocá-lo, como é geralmente sabido. Não pode agora informar o viajante qual o núcleo original do povoado. Mas só quando este solar se construiu é que a aldeia se foi aproximando. Nasceu então uma aldeia nova, a acrescentar à irmã. E a toponímia antiga voltou a ter razão.
Esta capela da Senhora da Trindade, com uma pirâmide em pedra a enformar um telhado que remata em chapéu cardinalício, data de 1547, se a era bater certa. E a parte fundeira do solar, a mais virada ao sol e à paisagem, juntamente com a azenha de água que lhe fica encostada, estão a ser engolidas pela vegetação. Fica a escadaria monumental, que dá acesso ao salão nobre onde era a sala do Preto, e a já falada capela da Trindade, a resistir ao tempo.
(...)
domingo, 19 de julho de 2009
Devolvido ao remetente
Meu caro MST:
Encontrei no correio o postal da editora, a anunciar-me o seu DESERTO. Quase romance... Era uma gentileza imerecida. E surpreendeu-me ver no sub-título uma irónica advertência: quase um romance, por não chegar a sê-lo. Mas V. acrescentara algures que se tratava de um quase diário... quase uma carta que se tornou grande demais... Percebi então que havia um mal-entendido. E eu já devia saber que, vinda da sua editora, a gentileza era mais comercial do que sincera.
Nunca esqueço os relatos de viagem que V. nos ofereceu em SUL. E o prazer que me trouxeram os textos do DAVID CROCKET. Aprecio-lhe muito a voz de jornalista, a voz de comentador, que não escolhe as palavras quando é necessário usá-las. Mesmo se não tem razão! Louvo-lhe muita vez o desassombro, neste tempo e num lugar em que tantos escribas sacrificam ao poder, à carreira e à vidinha.
Um dia apareceu-me V. à porta da livraria, num cartão em tamanho natural. A dizer-me, sorridente, que decidira ser escritor. Eu li três vezes o seu EQUADOR, para poder afirmar, com atributos, que era um sofrível romance. É verdade que já se vira melhor, quanto melhor, nos fins do séc. XIX. Mas ao menos o autor tinha matérias para contar, coisa que se tornou rara, com a turbamulta de escribas que poluem por aí os escaparates, com foguetes e ruídos, e petardos de pólvora seca.
Comprei o RIO DAS FLORES, para tirar a coisa a limpo. Para saber onde alcançava o seu talento. Mas cheguei à página 100 e emperrei. O casamento do rapaz do latifúndio, versado em Agronomia, com aquela filha do feitor, ainda por cima cigana, pareceu-me um tropeção da sua fantasia. Que o rapaz, quando muito, põe-lhe casa, usa-a como reserva das hormonas. E a donzela há-de ver nisso um favor, um privilégio, assim era o destino dos humilhados, antes de chegarmos todos às delícias da pós-modernidade. Um casamento daqueles é um lugar comum de fraco efabulador.
Mas bem pior é a noite de núpcias, que mistura ao implausível o absurdo. Não há lingerie, nem falta dela, que resista a uma piela de caixão à cova! Mesmo com feitiços de ervinhas da ribeira! Nem há pau que se revolte, numa situação daquelas!
É muitas vezes sabido, e quando sabido aceite, que uma boa ficção não se ocupa do que foi. Mas tudo nela ganha realidade na justa medida da sua verosimilhança. O deus-ex-machina foi sempre um mau remendo. E sem ele o que não é verosímil não existe, nem é material da construção literária. Nisso consiste a diferença entre imaginação criadora e fantasia infantil.
Além disso o nível da linguagem, que já em EQUADOR era inadequado, revelou-se agora um desconchavo. E sem linguagem não há literatura. O escritor saberá que a matéria linguística é a mesma. Mas uma coisa é usá-la em contexto literário, e outra bem diferente é o registo de jornal, ou a treta quotidiana.
Li o resto das FLORES a contragosto, só para cumprir calendário. Mas serviu-me de vacina. Que o papel da literatura e dos escritores, e mais daqueles que se ufanam de pôr os pagãos a ler, não é ocupar em vão o tempo dos leitores. Para isso já existe, com vantagens, o trottoir do shopping. É dar-lhes a aprender alguma coisa quando lêem.
A literatura séria raras vezes é dinheiro. Mas o tempo é-o há muito. Por isso, tenha paciência, devolvo-lhe o postalinho.
Encontrei no correio o postal da editora, a anunciar-me o seu DESERTO. Quase romance... Era uma gentileza imerecida. E surpreendeu-me ver no sub-título uma irónica advertência: quase um romance, por não chegar a sê-lo. Mas V. acrescentara algures que se tratava de um quase diário... quase uma carta que se tornou grande demais... Percebi então que havia um mal-entendido. E eu já devia saber que, vinda da sua editora, a gentileza era mais comercial do que sincera.
Nunca esqueço os relatos de viagem que V. nos ofereceu em SUL. E o prazer que me trouxeram os textos do DAVID CROCKET. Aprecio-lhe muito a voz de jornalista, a voz de comentador, que não escolhe as palavras quando é necessário usá-las. Mesmo se não tem razão! Louvo-lhe muita vez o desassombro, neste tempo e num lugar em que tantos escribas sacrificam ao poder, à carreira e à vidinha.
Um dia apareceu-me V. à porta da livraria, num cartão em tamanho natural. A dizer-me, sorridente, que decidira ser escritor. Eu li três vezes o seu EQUADOR, para poder afirmar, com atributos, que era um sofrível romance. É verdade que já se vira melhor, quanto melhor, nos fins do séc. XIX. Mas ao menos o autor tinha matérias para contar, coisa que se tornou rara, com a turbamulta de escribas que poluem por aí os escaparates, com foguetes e ruídos, e petardos de pólvora seca.
Comprei o RIO DAS FLORES, para tirar a coisa a limpo. Para saber onde alcançava o seu talento. Mas cheguei à página 100 e emperrei. O casamento do rapaz do latifúndio, versado em Agronomia, com aquela filha do feitor, ainda por cima cigana, pareceu-me um tropeção da sua fantasia. Que o rapaz, quando muito, põe-lhe casa, usa-a como reserva das hormonas. E a donzela há-de ver nisso um favor, um privilégio, assim era o destino dos humilhados, antes de chegarmos todos às delícias da pós-modernidade. Um casamento daqueles é um lugar comum de fraco efabulador.
Mas bem pior é a noite de núpcias, que mistura ao implausível o absurdo. Não há lingerie, nem falta dela, que resista a uma piela de caixão à cova! Mesmo com feitiços de ervinhas da ribeira! Nem há pau que se revolte, numa situação daquelas!
É muitas vezes sabido, e quando sabido aceite, que uma boa ficção não se ocupa do que foi. Mas tudo nela ganha realidade na justa medida da sua verosimilhança. O deus-ex-machina foi sempre um mau remendo. E sem ele o que não é verosímil não existe, nem é material da construção literária. Nisso consiste a diferença entre imaginação criadora e fantasia infantil.
Além disso o nível da linguagem, que já em EQUADOR era inadequado, revelou-se agora um desconchavo. E sem linguagem não há literatura. O escritor saberá que a matéria linguística é a mesma. Mas uma coisa é usá-la em contexto literário, e outra bem diferente é o registo de jornal, ou a treta quotidiana.
Li o resto das FLORES a contragosto, só para cumprir calendário. Mas serviu-me de vacina. Que o papel da literatura e dos escritores, e mais daqueles que se ufanam de pôr os pagãos a ler, não é ocupar em vão o tempo dos leitores. Para isso já existe, com vantagens, o trottoir do shopping. É dar-lhes a aprender alguma coisa quando lêem.
A literatura séria raras vezes é dinheiro. Mas o tempo é-o há muito. Por isso, tenha paciência, devolvo-lhe o postalinho.
Regras novas
A regra de três foi consagrada há muito.
Três são as pessoas da Trindade.
Três vezes cantou o galo.
Três vezes traiu São Pedro.
Três foram os mestres da tragédia.
Três foram os filósofos maiores.
Três são os vértices da dialéctica que mantém de pé o mundo.
Três são os lados do polígono mínimo.
Três foram as últimas invasões.
Três são os andamentos do concerto.
Três é o número de versos do haiku.
Mesmo o soneto que se abalança a quatro acaba a fechar com três.
Três minutos é o tempo que dura uma cantiga.
Três é o número de parcelas que nos cabem na memória.
Três sem desencavar é a medida popular.
Três minutos de leitura, nada mais, há-de ser a dimensão destes modernos postais. Que novos meios aconselham regras novas.
Três são as pessoas da Trindade.
Três vezes cantou o galo.
Três vezes traiu São Pedro.
Três foram os mestres da tragédia.
Três foram os filósofos maiores.
Três são os vértices da dialéctica que mantém de pé o mundo.
Três são os lados do polígono mínimo.
Três foram as últimas invasões.
Três são os andamentos do concerto.
Três é o número de versos do haiku.
Mesmo o soneto que se abalança a quatro acaba a fechar com três.
Três minutos é o tempo que dura uma cantiga.
Três é o número de parcelas que nos cabem na memória.
Três sem desencavar é a medida popular.
Três minutos de leitura, nada mais, há-de ser a dimensão destes modernos postais. Que novos meios aconselham regras novas.
sábado, 18 de julho de 2009
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Mutatis Mutandis
Em Angola, há muitos anos, as perdizes da Quissama desciam à estrada, a picotar sementes no capim das bermas. E em caso de emergência só levantavam voo longitudinalmente, ao comprido da estrada.
Um dia verificámos que a 120 quilómetros não escapava nenhuma. Acabavam espalmadas nas grelhas do jipe. E desde então ficou-nos o pitéu à distância dum golpe de acelerador.
Até que as perdizes aprenderam com a prática das primas, e deixaram de aparecer. A experiência abrira os olhos às perdizes da Quissama.
Mutatis mutandis, era agora caso para dizer que chegaram tarde à história os jipes da Toyota. Para os 90 milhões de filhos de África, que atravessaram o mar espalmados em porões.
Um dia verificámos que a 120 quilómetros não escapava nenhuma. Acabavam espalmadas nas grelhas do jipe. E desde então ficou-nos o pitéu à distância dum golpe de acelerador.
Até que as perdizes aprenderam com a prática das primas, e deixaram de aparecer. A experiência abrira os olhos às perdizes da Quissama.
Mutatis mutandis, era agora caso para dizer que chegaram tarde à história os jipes da Toyota. Para os 90 milhões de filhos de África, que atravessaram o mar espalmados em porões.
sábado, 11 de julho de 2009
Continua...
quarta-feira, 8 de julho de 2009
O TGV e "A Batalha do Caia"
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente do grupo Marktest e membro da ASPO Portugal
Na tendência que temos, nós os portugueses, de nos considerarmos o centro do mundo, andamos a falar dum TGV Lisboa-Madrid, quando, em boa verdade, devíamos falar no TGV Madrid-Lisboa. Com efeito, esta ligação faz todo o sentido na perspectiva espanhola: ligar Madrid a Lisboa é completar a rede de alta velocidade que há-de ligar a capital espanhola aos vértices do polígono ibérico. Lisboa será mais um desses vértices, tal como já são – ou vão ser no futuro - Sevilha, Valência, Bilbau, Barcelona e a Coruña. Esta ligação terá como principal efeito reforçar a centralidade ibérica de Madrid e acentuar a periferia de Lisboa. Servirá mais para trazer os espanhóis a Lisboa, e menos para levar os portugueses para a Europa.
A “distância” entre Madrid e Lisboa, consequência dum hinterland pobre e pouco povoado, foi o que historicamente alicerçou a existência de Portugal como país independente. A geo-morfologia do território não favorece um corredor natural a ligar as duas capitais. Nem sequer existe um centro urbano de média importância a dividir o caminho e a atenuar a jornada, pois nem Badajoz, nem Cáceres ou Mérida cumprem esse papel. E a Évora da nossa imaginação nunca esteve no caminho de Madrid. Razão tinha Oliveira Martins, ao espantar-se com o facto de os grandes rios ibéricos serem cortados perpendicularmente pela fronteira. Porque eles – e o Tejo em particular - nunca foram traço de união, nem vias de penetração.
Com a drástica redução da “distância” para Madrid, prometida pela alta velocidade, a “Costa Oeste” da Europa pode afinal ser apenas la playa madrileña. E o aeroporto de Barajas, a menos de três horas de Lisboa, será também o nosso aeroporto. O que D. João de Castela não conseguiu em Aljubarrota, nem D. Filipe IV nas guerras da restauração, pode vir a ser conseguido pelo TGV. Refiro-me à conquista de Lisboa. E a terceira travessia do Tejo vai ser a passadeira que estendemos, para a entrada triunfal de nuestros hermanos em Lisboa.
Esta pacífica invasão, anunciada pelo TGV que virá de Madrid, traz-me à memória Eça de Queirós. Cônsul em Inglaterra em 1878, o escritor pensou em escrever um romance - A Batalha do Caia. O argumento era simples: Portugal é invadido pela Espanha e humilhado na sua dignidade de nação secular. Com ele esperava Eça de Queirós exaltar a independência nacional e avivar a consciência colectiva para superar o “rebaixamento” sofrido. O romance nunca foi publicado, mas ficou um conto - A Catástrofe - a atestar a sua ideia.
Estou convicto de que o nosso Eça, que foi cônsul em Newcastle e Paris, e foi um dos nossos grandes europeístas do século XIX, nunca terá passado por Madrid. Naquele tempo, a Europa começava nos Pirenéus. E a ligação de Portugal à Europa, já feita pela via férrea, não passava por Madrid. Passava, e ainda passa, por Salamanca e Valladolid, pelo caminho do Sud-Expresso até à fronteira de Irun… É também esse o caminho dos milhões de emigrantes portugueses que vivem e trabalham na Europa, e aos quais o TGV de Madrid de pouco ou nada servirá.
Enquanto país, Portugal tem que ter uma estratégia em relação ao futuro. E essa estratégia passa, em primeiro lugar, por uma definição clara da sua relação com a Espanha: ou União Ibérica, ou reforço da independência nacional. A construção do TGV de Madrid para Lisboa, de que hoje tanto se fala, não pode ser desligada dessa estratégia. Para o melhor e para o pior! E o debate sobre a sua construção não deve ser deixado apenas aos engenheiros que a aprovaram, ou aos economistas que agora a vêm recusar.
Confesso que gosto de Madrid e dos espanhóis. E agrada-me a ideia de tomar o pequeno-almoço em Lisboa, ir almoçar a Madrid, visitar o Museu do Prado e regressar a casa, ainda a tempo de jantar. Mas antes disso preferia ver um Sud-Expresso moderno, a correr veloz pela Meseta Ibérica, cheio de emigrantes e imigrantes. Uns e outros deixando de pagar, desta maneira, o seu tributo de sangue às estradas espanholas.
Terá sido profética a intenção do Eça, e da sua fracassada “Batalha do Caia”?
Presidente do grupo Marktest e membro da ASPO Portugal
Na tendência que temos, nós os portugueses, de nos considerarmos o centro do mundo, andamos a falar dum TGV Lisboa-Madrid, quando, em boa verdade, devíamos falar no TGV Madrid-Lisboa. Com efeito, esta ligação faz todo o sentido na perspectiva espanhola: ligar Madrid a Lisboa é completar a rede de alta velocidade que há-de ligar a capital espanhola aos vértices do polígono ibérico. Lisboa será mais um desses vértices, tal como já são – ou vão ser no futuro - Sevilha, Valência, Bilbau, Barcelona e a Coruña. Esta ligação terá como principal efeito reforçar a centralidade ibérica de Madrid e acentuar a periferia de Lisboa. Servirá mais para trazer os espanhóis a Lisboa, e menos para levar os portugueses para a Europa.
A “distância” entre Madrid e Lisboa, consequência dum hinterland pobre e pouco povoado, foi o que historicamente alicerçou a existência de Portugal como país independente. A geo-morfologia do território não favorece um corredor natural a ligar as duas capitais. Nem sequer existe um centro urbano de média importância a dividir o caminho e a atenuar a jornada, pois nem Badajoz, nem Cáceres ou Mérida cumprem esse papel. E a Évora da nossa imaginação nunca esteve no caminho de Madrid. Razão tinha Oliveira Martins, ao espantar-se com o facto de os grandes rios ibéricos serem cortados perpendicularmente pela fronteira. Porque eles – e o Tejo em particular - nunca foram traço de união, nem vias de penetração.
Com a drástica redução da “distância” para Madrid, prometida pela alta velocidade, a “Costa Oeste” da Europa pode afinal ser apenas la playa madrileña. E o aeroporto de Barajas, a menos de três horas de Lisboa, será também o nosso aeroporto. O que D. João de Castela não conseguiu em Aljubarrota, nem D. Filipe IV nas guerras da restauração, pode vir a ser conseguido pelo TGV. Refiro-me à conquista de Lisboa. E a terceira travessia do Tejo vai ser a passadeira que estendemos, para a entrada triunfal de nuestros hermanos em Lisboa.
Esta pacífica invasão, anunciada pelo TGV que virá de Madrid, traz-me à memória Eça de Queirós. Cônsul em Inglaterra em 1878, o escritor pensou em escrever um romance - A Batalha do Caia. O argumento era simples: Portugal é invadido pela Espanha e humilhado na sua dignidade de nação secular. Com ele esperava Eça de Queirós exaltar a independência nacional e avivar a consciência colectiva para superar o “rebaixamento” sofrido. O romance nunca foi publicado, mas ficou um conto - A Catástrofe - a atestar a sua ideia.
Estou convicto de que o nosso Eça, que foi cônsul em Newcastle e Paris, e foi um dos nossos grandes europeístas do século XIX, nunca terá passado por Madrid. Naquele tempo, a Europa começava nos Pirenéus. E a ligação de Portugal à Europa, já feita pela via férrea, não passava por Madrid. Passava, e ainda passa, por Salamanca e Valladolid, pelo caminho do Sud-Expresso até à fronteira de Irun… É também esse o caminho dos milhões de emigrantes portugueses que vivem e trabalham na Europa, e aos quais o TGV de Madrid de pouco ou nada servirá.
Enquanto país, Portugal tem que ter uma estratégia em relação ao futuro. E essa estratégia passa, em primeiro lugar, por uma definição clara da sua relação com a Espanha: ou União Ibérica, ou reforço da independência nacional. A construção do TGV de Madrid para Lisboa, de que hoje tanto se fala, não pode ser desligada dessa estratégia. Para o melhor e para o pior! E o debate sobre a sua construção não deve ser deixado apenas aos engenheiros que a aprovaram, ou aos economistas que agora a vêm recusar.
Confesso que gosto de Madrid e dos espanhóis. E agrada-me a ideia de tomar o pequeno-almoço em Lisboa, ir almoçar a Madrid, visitar o Museu do Prado e regressar a casa, ainda a tempo de jantar. Mas antes disso preferia ver um Sud-Expresso moderno, a correr veloz pela Meseta Ibérica, cheio de emigrantes e imigrantes. Uns e outros deixando de pagar, desta maneira, o seu tributo de sangue às estradas espanholas.
Terá sido profética a intenção do Eça, e da sua fracassada “Batalha do Caia”?
País a tracejado
Mudanças
A mulher do viaduto
O comboio, com lotação completa, tinha saído à tabela, como é sua obrigação. Mas passado um quarto de hora parou imprevistamente, e ficou ali plantado na vastidão da lezíria. Os passageiros miraram a paisagem, trocaram olhares perplexos, remexeram os costados nas poltronas. Depois disso regressaram ao jornal e aos ecrãs dos seus portáteis. Mesmo a avó, que vinha a ler ao neto a história duma princesa, resolveu continuar.
Um ror de tempo depois ouviu-se um altifalante, atenção sores passageiros, este comboio encontra-se retido, por motivo de incidente com pessoa, em plena via.
O aviso provocou leituras desencontradas. Até que apareceu um hermeneuta e explicou o sucedido: uma mulher lançou-se dum viaduto, na altura em que o comboio ia a passar.
Houve peitos que ali estremeceram. Mas porém estavam parados há uma boa meia hora, e até a avó das fábulas da princesa suspirou que a tal mulher escolhesse outro comboio. Para bom sossego do mundo.
Logo estalaram telemóveis, a transmitir a notícia aos quatro ventos. E quando finalmente alguém abriu as portas, foram descendo à linha os passageiros.
Eu quis tirar, de longe, uma fotografia. Mas o pé que atirei à vala seca logo se afundou num lodo movediço. E uma senhora que aventurou os dois foi recuperada a custo, em arriscada operação de salvamento. Foi então que um viajante pôs ao ombro uma mochila e desandou linha fora, Lisboa estava ali a uns trinta quilómetros.
Passei o dia de calça arregaçada. E cheguei a casa à noite, com três quilos a mais no pé direito, o estômago a ladrar de fome. Da mulher do viaduto não se voltou a falar.
terça-feira, 7 de julho de 2009
Portugal dos Cabrais
[Vénias ao João Paulo Sousa, (impressoesdigitais2.blogspot.com), que na Casa dos Avós, em Caspelo Rodrigo, me escancarou o Google e me apontou o caminho!]O Colmeal já foi terra de colmeias, mas hoje não tem nenhuma. Nem sequer apicultores, nem casas onde vivessem. Fica ali numa asa da Marofa.
Parecerá que desertaram as abelhas e não é verdade. Que as abelhas morrem de tristeza, não desertam.
O Colmeal era um feudo dos Cabrais, ainda vivem as cabras que o atestam. E um dia o dono partiu, à descoberta da Índia. Há quem diga que até se perdeu no mar.
Ficaram os apicultores a fumigar as colmeias...
a riscar pelos caminhos um rasto de humanidade...
a bailaricar no adro, nas festas da padroeira...
e a tocar a concertina, em noites de borga e lua.
Há-de haver 50 anos - 8 de Julho de 57 - os trinetos dos Cabrais reclamaram o domínio. Deram como testemunhas dois desenhos numa pedra.
Um juiz tomou-lhes o depoimento, foi na conversa das cabras, deu cabimento ao pedido. E mandou cumprir a lei.
A guarda veio a cavalo, correu com os apicultores. As abelhas morreram de tristeza e o Colmeal perdeu tudo.
Perdeu apicultores e colmeias, a igreja e os santos dela, o adro e as concertinas.
Acabou mesmo a perder os trinetos dos Cabrais.
E mais tarde veio o tempo, e os incêndios, a tomar conta do resto.
Mas ficara por cumprir um fantasma muito antigo, se não era um remorso dos Cabrais. O facto é que o Colmeal ganhou agora uma estrada, que há séculos lhe fez falta e nunca teve.
É de risco ao meio, a estrada, à maneira da Europa e dos fundos que a pagaram. Mas chega ao Colmeal e ali falece, que para lá do fim do mundo não há destino nenhum.
O largo novo há-de ser calcetado em granito, sempre tem outra nobreza. E acautela as poeiradas, que molestam as abelhas. O mais certo é desenharem nele uma rotunda, pode sempre algum Cabral querer dar a volta. Quem se habituou um dia aos fumos da pimenta, mais aprecia hoje os fundos do FEOGA. E quinhentos anos não é nada, no Portugal dos Cabrais.
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