domingo, 19 de julho de 2009

Devolvido ao remetente

Meu caro MST:
Encontrei no correio o postal da editora, a anunciar-me o seu DESERTO. Quase romance... Era uma gentileza imerecida. E surpreendeu-me ver no sub-título uma irónica advertência: quase um romance, por não chegar a sê-lo. Mas V. acrescentara algures que se tratava de um quase diário... quase uma carta que se tornou grande demais... Percebi então que havia um mal-entendido. E eu já devia saber que, vinda da sua editora, a gentileza era mais comercial do que sincera.
Nunca esqueço os relatos de viagem que V. nos ofereceu em SUL. E o prazer que me trouxeram os textos do DAVID CROCKET. Aprecio-lhe muito a voz de jornalista, a voz de comentador, que não escolhe as palavras quando é necessário usá-las. Mesmo se não tem razão! Louvo-lhe muita vez o desassombro, neste tempo e num lugar em que tantos escribas sacrificam ao poder, à carreira e à vidinha.
Um dia apareceu-me V. à porta da livraria, num cartão em tamanho natural. A dizer-me, sorridente, que decidira ser escritor. Eu li três vezes o seu EQUADOR, para poder afirmar, com atributos, que era um sofrível romance. É verdade que já se vira melhor, quanto melhor, nos fins do séc. XIX. Mas ao menos o autor tinha matérias para contar, coisa que se tornou rara, com a turbamulta de escribas que poluem por aí os escaparates, com foguetes e ruídos, e petardos de pólvora seca.
Comprei o RIO DAS FLORES, para tirar a coisa a limpo. Para saber onde alcançava o seu talento. Mas cheguei à página 100 e emperrei. O casamento do rapaz do latifúndio, versado em Agronomia, com aquela filha do feitor, ainda por cima cigana, pareceu-me um tropeção da sua fantasia. Que o rapaz, quando muito, põe-lhe casa, usa-a como reserva das hormonas. E a donzela há-de ver nisso um favor, um privilégio, assim era o destino dos humilhados, antes de chegarmos todos às delícias da pós-modernidade. Um casamento daqueles é um lugar comum de fraco efabulador.
Mas bem pior é a noite de núpcias, que mistura ao implausível o absurdo. Não há lingerie, nem falta dela, que resista a uma piela de caixão à cova! Mesmo com feitiços de ervinhas da ribeira! Nem há pau que se revolte, numa situação daquelas!
É muitas vezes sabido, e quando sabido aceite, que uma boa ficção não se ocupa do que foi. Mas tudo nela ganha realidade na justa medida da sua verosimilhança. O deus-ex-machina foi sempre um mau remendo. E sem ele o que não é verosímil não existe, nem é material da construção literária. Nisso consiste a diferença entre imaginação criadora e fantasia infantil.
Além disso o nível da linguagem, que já em EQUADOR era inadequado, revelou-se agora um desconchavo. E sem linguagem não há literatura. O escritor saberá que a matéria linguística é a mesma. Mas uma coisa é usá-la em contexto literário, e outra bem diferente é o registo de jornal, ou a treta quotidiana.
Li o resto das FLORES a contragosto, só para cumprir calendário. Mas serviu-me de vacina. Que o papel da literatura e dos escritores, e mais daqueles que se ufanam de pôr os pagãos a ler, não é ocupar em vão o tempo dos leitores. Para isso já existe, com vantagens, o trottoir do shopping. É dar-lhes a aprender alguma coisa quando lêem.
A literatura séria raras vezes é dinheiro. Mas o tempo é-o há muito. Por isso, tenha paciência, devolvo-lhe o postalinho.