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O feitor já voltou à sua folga, e o viajante vai à procura do companheiro de estrada, que está à espera no largo. No caminho encontra a escola da aldeia. É uma construção de sala dupla, e já teve duas professoras. Mais tarde foi jardim de infância, e agora está vazio há muito tempo. Não há crianças para ele. Não há fome que não dê em fartura nesta vida, conforme já temos visto. E se na outra for a mesma coisa, de pouco nos servirá.
O viajante já encontrou o companheiro, já viu o que há para ver. Vai percebendo a morte que aí ronda, nos castanheiros, nas casas e nas vidas. E vai em paz, vazio de emoções, como quem apagou um incêndio interior.
O sobrante da tarde há-de este viajante gastá-lo num lugar que alguma vez já viu, e lhe é muito predilecto. É um saltinho ali à Torre. Vai subindo a pendente suave, entre encostas tomadas pelos matos, donde os soitos debandaram, dizimados pela doença. À direita a frescura da barragem amacia quanto pode a rudeza destes montes. Andam fumos espalhados no céu, não sabe o viajante donde vêm. E já ficou para trás um projecto de pinhal, que a processionária está a derrotar. À medida que a Torre se aproxima avistam-se pelos campos novas plantações, sinal de que alguém resiste. Razão terá o feitor Cláudio, o mal maior está na cabeça das pessoas.
Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja lá como for, é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente social que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.
O viajante fica atordoado e põe-se a olhar em volta, não sabe o que há-de fazer. Ensaia a peça de quem vem de longe, pede licença para ir ver o passal, ao menos as fachadas exteriores. Ela deixa-se iludir, mas entrar na capela nem pensar.
Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Era ele neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.
Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava ao viajante o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora, e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, no centro o brasão do fidalgo, o resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, aos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.
Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com palmeiras, crocodilos, coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, igualando a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.
Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escarlate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. “Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro”. E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. “Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Bahia...“. E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha.
Ao ver-se em aflições, procurou D. Luís à protecção da santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado do solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. “Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar”. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.
Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do solar. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira. Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que deixou aqui um túmulo onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão. E ele foi-se embora sem saber a verdade, talvez seja o melhor.
A história não terá remissão. Mas quem quer redimir-se é a assistente social, que aborda o viajante quando este vai de partida. Em querendo poderá ver, ali na igreja matriz, umas talhas do tempo da capela, e dos mesmos anónimos artistas. O viajante fica duvidoso, cansado destas pompas inúteis. Outras são as galas e os milagres que ele gostava de ver, se os encontrasse. Diz a mulher que apareceram candidatos à compra do solar, para o transformar em turismo. Porém este viajante, atento ao que a casa gasta, mantém o cepticismo. Se os milagres da Senhora da Penha e do ouro brasileiro não lograram convertê-lo, não há-de ser agora com os negócios europeus que se vai obrar a maravilha.
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