quarta-feira, 22 de julho de 2009

Portugalmente (40)

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A um canto do largo, à beira da estrada, há um pequeno café, e o viajante aproveita para acomodar os seus vícios. O dono do café é um homem ainda novo, mas já tem duas filhas espigadas. São elas a atender os clientes, enquanto estão de férias. O pai vai todos os dias trabalhar à Guarda, numa fábrica de componentes automóveis, mas hoje é dia de folga. Por isso está aqui refastelado, tratado como um rei, a beber a sua cerveja. E a sorte maior vai para este viajante, que nada preza mais que uma boa conversa.
O Cláudio é um homem informado, sabe o que diz quando fala, que a vida permitiu-lhe estudar as manias do mundo e criar o seu parecer, não aconteceu a todos. Calhou entre a geração antiga, a do seu pai, que andou escravizada em França a fugir à miséria, e a geração mais moderna, criada a proteínas e ilusões. Juntou o melhor das duas. E além do trabalho na fábrica é feitor dos condes de Avillez, vai olhando por aquilo. As terras, que há muito ninguém amanha, alimentam as ovelhas de que se ocupa a mulher, a dona Rosa. Mas só vendem os borregos, quando os há. Tosquiam as chalanas por causa do calor, que a lã não tem servidão. Já o leite nem lho tiram, e os cordeiros são quem mais agradece a regalia. Há três rebanhos na aldeia, que os gados miúdos sempre valem a pena, do ponto em que se cumpram as papeladas da Europa e vençam o subsídio por cabeça. Sobram as castanhas a quem as tiver, e enquanto a doença as não levar de todo. Quanto ao resto, só metido à floresta, quem tiver dimensão sempre arranja um projecto. Mas no geral as terras são miúdas.
- E esta decadência, ao que a terra já foi?!
Na ideia do Cláudio, o principal vem da cabeça das pessoas, e ao viajante não custa acreditar. A ruína começou na debandada lá para fora, há quarenta anos acabou-se a mão-de-obra. Mas se a coisa já ia mal de carro, que a vida era uma miséria, muito pior andou depois, de arado, porque a aldeia começou a morrer. E quando o pessoal voltou para fazer uma casa, a junta da altura foi curta de vistas. Era no tempo da outra senhora. Espaços apropriados para a construção também não abundavam, verdade seja dita, e muitos procuraram outras terras. Hoje restam aí meia dúzia de gatos-pingados, e as poucas casas de emigrantes passam o ano vazias. Mesmo nas férias, como agora, já nem todos aparecem. Os filhos só falam francês, fazem a vida por lá. Os netos nem portugueses são, nada os atrai aqui. E os velhos lá gastam a reforma a ruminar lembranças em subúrbios. Já lhes faltam as forças para meter pés ao caminho, quando chega o verão.
Estas casas de emigrantes lembram ao viajante um rei que um dia tivemos, e perdemos. É um enviesado pensamento, mas este viajante já os tem tido piores. Porque o fadário é igual. Nunca nada foi mais desejado, nada fez a um povo inteiro tanta falta. E no entanto, se o rei tivesse voltado, não serviria para nada. A estas casas aconteceu o mesmo, que nasceram para ficarem vazias. São tão desmedidas como os sonhos, e mais inúteis que os mitos. E algumas têm varandins para a rua, à altura dum pescoço. Isto fica a ruminar o viajante, mas o Cláudio já se adianta na conversa.
Um dia chegou a liberdade e as coisas pioraram, que o povo já era pouco e dividiu-se. Por interesses mesquinhos, por orgulhos, por soberbias parvas, pelo dinheiro que se recebe na junta. As diferenças políticas nunca foram nenhumas, em todas as cabeças só regula a ignorância mais escura. E o partido da câmara, que sempre foi o mesmo, explorou rivalidades, dividiu para reinar, é o que sabem fazer. Agora metade do povo evita a outra metade. E as eleições só alimentam disputas, só atiçam cambalachos, o melhor que podia acontecer à terra era acabar com elas. Mesmo assim eram precisos muitos anos para varrer estas contendas. E para algumas nem a morte.
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