sábado, 19 de março de 2016

Veneza

(Publicado pela primeira vez em Paris, em 1881, por Salomão Sáraga, amigo de Antero)
[Rialto]
Seguindo um figurino então em voga, Antero de Quental também viajou entre reflexões"à roda do seu quarto". O proveito é hoje nosso. Já ele, acabou suicidado.  Sem surpresa.
- Da Introdução: «(...) À sombra delas [as igrejas nacionais], muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e Mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções duma calamidade nacional.(...)»
- Da Viagem: «Veneza, apesar de decadente, é ainda bela - talvez a mais bela entre todas as cidades da Europa meridional. E, seguramente, entre todas elas, a mais pitoresca, a mais original e a mais plácida, daquela placidez nobre a que os italianos chamam soave austero. Esta placidez, este sossego é um dos maiores encantos da antiga capital dos Doges. O viajante, cansado e aturdido pelo tumulto vulgar das grandes cidades modernas, experimenta, ao entrar em Veneza, sensação igual à do caminheiro, que, depois dum dia de sol e fadiga, se espreguiça indolentemente num banho tépido e perfumado. Veneza, em despeito das transformações inevitáveis por que tem passado, é ainda e será sempre uma cidade semi-oriental, por conseguinte cidade de repouso suave e de indolente cismar.
Apesar da sua posição marítima, nunca mais será um centro, um empório comercial: por causa da sua excepcional edificação lacustre, jamais se transformará numa cidade industrial. Ficará eternamente, com os seus canais, as suas cúpulas bizantinas, as suas gôndolas e os seus bandos de pombas mansas e familiares, como uma relíquia encantadora de um mundo extinto e a terra preferida pelos artistas, pelos poetas, pelos cismadores amigos de um silêncio cheio de imagens e pensamentos. Esta cidade tem uma fisionomia única: latina e bizantina, ao mesmo tempo ocidental e oriental, cristã e maometana, juntaram-se nela e fundiram-se numa harmonia graciosíssima os génios mais diversos.Mole e voluptuoso, como o Oriente, vivo e caprichoso, como Ocidente, o génio de Veneza participa dos mais opostos, mas é só semelhante a si mesmo. É isto que a torna única. (...)
Durante toda a Idade-Média, Veneza, constituída o centro, pode bem dizer-se, do comércio do mundo, negociava directamente com Constantinopla, o Egipto, a Síria, as Ilhas do Mediterrâneo, os portos do Mar Negro, a Ásia Menor e toda a Europa Ocidental; indirectamente, por meio das caravanas dos Árabes e Siríacos, dum lado, do outro lado por meio das grandes feiras do Reno, onde comcorriam os negociantes das cidades Hanseáticas, com a Pérsia, a Mongólia, a Índia, a Arábia, os povos do Báltico, a Polónia e a Rússia. (...)
A instituição dos Doges não altera essa primitiva liberdade. O Doge é magistrado e não senhor. Se se mostra tirano, expulsam-no, tonsuram-no ou executam-no. (...)»
[Impresso na Europres em Setembro de 2015]