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A última acção militar que presenciei foi o cerco do forte de Alcácer, em Toledo. Em confronto com os acontecimentos ulteriores - o horror de centenas de cidades e aldeias destruídas pela "acção civilizadora" dos aviões de bombardeamento italianos e alemães, as incríveis matanças na estrada de Almeria, a bacanal sádica das Vascongadas e das Astúrias, Guernica, Durango, os bombardeamentos aéreos de Barcelona e Valência - pode-se considerar Toledo, talvez, uma bricadeira de crianças. Houve, entretanto, algo de tão desprezível no assédio daquele grupo fortificado de construcções medievais, que a minha memória assinala Toledo como o lugar onde vi a ignomínia fascista descer ao seu nível mais baixo.
A maior parte dos defensores legalistas da cidade retiraram-se em ordem na direcção de Madrid quando entraram as tropas de Franco. Somente os prisioneiros e os doentes foram mortos pelos cinco batalhões de mouros que marchavam na vanguarda do exército "cristão". Ocorreu esta sanguinolenta façanha enquanto Franco e os seus auxiliares se dirigiam à catedral para assistir à missa solene de acção de graças pela captura da cidade, que é a sede do Primaz de Espanha. Enquanto o generalíssimo estava de joelhos, os batalhões do Riff invadiam o hospital municipal e trespassavm com as suas baionetas todos os doentes.
Ao mesmo tempo o mundo entoava hinos aos defensores fascistas do Alcácer, que tinham resistido durante meses nas adegas e câmaras subterrâneas do forte, e que acabaram por ser libertados. O cerco do Alcácer tornou-se um símbolo universal da coragem e resistência fascista. (...) Encerrar-se naquele forte com suas mulheres e filhos e resistir durante meses às investidas diárias da "canalha vermelha" foi decantado como um feito de heroísmo insuperável. Era uma epopeia que atravessaria os séculos, quando todos os demais episódios da guerra civil estivessem esquecidos.
Ela poderá, na verdade, atravessar os séculos, porém não como uma epopeia heróica, mas como uma das mais repugnantes exibições de cobardia e crueldade, pois nessa história de valor fascista há um pequeno equívoco: as mulheres e crianças encerradas com os defensores do forte não eram seus familiares, eram as esposas e filhos dos sitiantes!
A guarnição do Alcácer era composta de cadetes e dos seus instrutores. Por via de regra, os cadetes que cursam uma academia militar não têm idade para estar casados. Assim acontecia no Alcácer. Naturalmente, os rapazes e seus oficiais, na maioria rebentos de famílias nobres, entraram na conspiração geral contra a República.
A 20 de Julho, quando todos os olhos estavam fitos em Marrocos e em Barcelona, os cadetes do Alcácer saíram do forte, e começaram a arrebanhar o maior número de mulheres e crianças que podiam. Isto não foi muito difícil, pois o Alcácer fica nas vizinhanças do bairro mais populoso da cidade. (...)
Os homens tinham saído para o trabalho. Em menos duma hora os nobres fascistas arrastaram algumas centenas de mulheres e crianças e encerraram-nas nas adegas do castelo.(...)
Quando se espalhou a notícia pela cidade e os trabalhadores começaram a voltar, foram recebidos com rajadas de metralhadora ao aventurarem-se nos espaços abertos vizinhos do castelo.(...)
- Se eles nos devolverem as crianças, não lhes tocaremos num só cabelo! - diziam os milicianos ao padre, quando este se encaminhou para o Alcácer, acompanhado de um homem que empunhava uma bandeira branca. - Mas diga-lhes também que se não se renderem faremos saltar o forte inteiro.
O padre voltou meia hora depois e abanou a cabeça.
- Não adianta falar. As mulheres e as crianças estão amontoadas nos túneis. Serão as primeiras a morrer se vocês empregarem a dinamite. (...) Estão em condições lamentáveis. Eu vi-os... foram avisados que morrerão, se vocês atacarem. Diversas mulheres enlouqueceram, três crianças nasceram lá nas caves. Não há alimento, não há leite. Receio que nunca mais vejais os vossos entes queridos.
O vaticínio do padre realizou-se, pois quando Franco entrou em Toledo as mulheres e as crianças sobreviventes foram tiradas do Alcácer e entregues ao capricho dos rifenhos. Os espanhóis costumam dizer que quando os rifenhos se cansam duma mulher, matam-na. (...)