quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ecos da Sonora - XXXIV


Parecem de ontem esta vivacidade, a crítica, a ironia, o sarcasmo de Voltaire, vindos do séc. XVIII.
Um prazer, um pitéu, um luxo, neste tempo em que o subprime chegou à literatura.

Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um feitiço infalível para impedir a terra de tremer.
Por consequência agarraram num biscaínho, criminoso por casamento com a comadre, e em dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham posto de parte o toucinho. Depois do jantar amarraram o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado demais, o outro por ter escutado com ares de aplauso. Ambos foram conduzidos em separado para compartimentos de extrema friagem, nos quais o sol nunca incomodava ninguém.
Oito dias passados, ambos foram revestidos de sambenitos e adornaram-lhes as cabeças com mitras de papel. A mitra e o sambenito de Cândido traziam uma pintura de chamas erguidas, direitas, e no meio vários diabos sem cauda nem garras.
Saíram em procissão assim vestidos, ouvindo ao mesmo tempo um sermão intensamente patético, acompanhado duma bela música em falsete baixo. Cândido foi açoitado ao ritmo da música e do cântico; o biscaínho e os dois homens que não comiam toucinho foram queimados; e Pangloss foi enforcado, contrariamente ao que se esperava. Mas no mesmo dia a terra voltou a tremer, com fragor espantoso.
Cândido, aterrado, interdito, tresloucado, sangrando, palpitando, dizia de si para si:
- Se este é o melhor dos mundos possíveis, que serão os outros? Ainda se se limitassem a açoitar-me, vá lá, que já o fui no país dos búlgaros. Mas, ó meu querido Pangloss, ó filósofo incomparável, por que te vi enforcar sem haver razão?! Ó meu querido anabaptista, homem bom entre os bons, por que te vi afogar dentro do porto?! Ó menina Cunegundes, a pérola das raparigas, para que foste esventrada?!
Ia-se embora mal se podendo suster, açoitado, sermoneado, absolvido e abençoado, quando uma velha se aproximou e lhe disse:
- Meu filho, encha-se de coragem e siga-me.