segunda-feira, 7 de junho de 2010

São Roque


Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao São Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela, as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao São Roque, o Maravilhas curou-se, o ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta. O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente.
Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era a mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao São Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o São Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.
E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque.
O Rasga, mal chegou, pediu três notas pela burra a um da Parada que lhe ofereceu duas, a mulher do da Parada ainda o puxou, homem para que queres a burra, o rachador do Monte meteu-se logo, isto não é assunto de mulheres, tinham que fazer negócio, tem que tirar alguma coisa, não tiro, dou-lhe mais uma nota de vinte, tiro-lhe essa nota, nem mais um tostão, e o do Monte a dizer racha-se, vários a apoiar, fica por duas notas e meia, o rachador a agarrar-lhes as mãos, estranha união, e a fazer com a sua um corte simbólico, deram as mãos estava feito o negócio, um tirou cinquenta o outro deu mais cinquenta, consumada a liturgia logo assomou meia nota de sinal, faltavam duas que apareceriam quando lhe entregasse o rabeiro, vai uma rodada, paga o vendedor que recebeu o dinheiro, primeiro um copo para o comprador e outro para o vendedor, o rachador a seguir, depois para todas as testemunhas, outra rodada paga o comprador, outra ainda, esta pago eu, diz um da Cerdeira, não quero mais diz o de Pailobo, morra quem se negue, praguejou um da Mesquitela, olha vem ali o Proença da Malta, grande negociante, como está, disseram todos, uma rodada, pago eu, diz o Proença, mas a minha primeiro, exigiu o da Cerdeira com agrado geral, e ali ficaram a seguir os negócios, os foguetes e a festa, e a tirar o chapéu e a agradecer ao Proença quando este foi dar a volta pelo sítio do gado onde já se encontrava o Serafim dos Gagos a disputar-lhe o vivo e a pôr a fasquia aos preços.
Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha de levar o Viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o bucho cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.
Algum tempo depois, perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no São Roque, menino, ficaram no São Roque.

Foi na colectânea PEDRAS SOLTAS que o talento do Barroco Esperança me deu a conhecer pela primeira vez os milagres do São Roque, ali num cabeço à margem do rio Côa. E agora levou-me lá uma caminhada que desceu as enconstas de Mido, entre penedias e carrascos.
O São Roque ainda lá está, no cimo da colina, apagado pelo duplo viaduto duma autopista moderna. Mas já não é pretexto de negócios, nem alento de fés e devoções. Também já não faz milagres, mal o meu, não tive a sorte do Rasga. Vim de lá com um pé estraçalhado.