Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
A APODEMO, Associação de Empresas de Estudos de Mercado (que me orgulho de ter ajudado a criar, há vários anos), elegeu como lema inspirador do seu recente congresso anual “O Consumidor Avatar”. E não poderia ter sido mais oportuna esta escolha, considerando os tempos difusos que se vivem, em que não se descortina bem a fronteira entre a fantasia e a realidade.
Um “avatar” é uma espécie de “outro eu”, ou um “eu virtual”, que se move num mundo regido por leis distintas das do mundo real, que tem outras leis da física, da economia, da forma de estar na sociedade. Ora, nesse mundo, os produtos que se fabricam, que se vendem e se consomem, são “produtos avatares”. Os quais defino como “marcas sem produto” (já explicarei melhor), por oposição às “commodities”, que são produtos sem marca. Nesse mundo virtual, os consumidores são “consumidores avatares”, e, como tal, só consomem "produtos avatares".
Para melhor esclarecer o conceito de “produto avatar”, vejamos um exemplo: a Coca Cola é uma bebida gasosa refrescante, que tem as propriedades e as funções de outras bebidas similares como a limonada, a “gasosa” ou o velho “pirolito”. Só que na realidade as coisas não são bem assim. A marca “Coca Cola” acrescenta à bebida outros ingredientes para além da água, do xarope, do açúcar e do anidrido carbónico; acrescenta-lhe uma dose de “festa”, um pouco de “alegre disposição”, uma pitada de “ambiente jovem”, completados com um “jingle musicado” e umas gotas de cheiro a “american way of life”. Tudo isto, bem misturado e nas doses certas, constitui uma mistura explosiva e irresistível, sobretudo para os mais jovens.
Ora, se retirarmos à Coca Cola a água, o açúcar, o xarope e o anidrido carbónico, o que fica dentro da embalagem é uma “Coca Cola avatar”. É isso mesmo, o leitor já percebeu que aquilo que fica na garrafa é uma marca sem produto. E só um “consumidor avatar” é que poderá consumir essa Coca Cola.
Terá sido esse “consumidor” que os técnicos de marketing, de publicidade e de estudos de mercado foram analisar à lupa, no seu Congresso Anual. E foram armados das ferramentas adequadas para o efeito, tais como estudos aprofundados, focus grupos, técnicas projectivas, técnicas de observação etnográficas, semióticas, etc... E mesmo técnicas de neuromarketing, porque o “consumidor avatar”, na escolha dos seus consumos, utiliza inúmeros feixes de neurónios, os quais, para esse fim, trabalham de forma holística e interactiva, em alta velocidade de processamento.
Eu não estive no congresso da APODEMO. E começo a suspeitar que o “mundo avatar” é uma fraude, uma crença e uma mentira que nos querem impingir. No íntimo do meu pensamento, já tive a ousadia de me inclinar a negar a sua existência. Bem sei que isto é um sacrilégio, e que posso vir a sofrer as penas do inferno, por este “pecado de pensamento”.
Mas só “por pensamentos” serei pecador. Uma vez que, na realidade das palavras e das obras, continuo, por dever de ofício, a ser sacerdote e praticante assíduo desses cultos.