Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
A construção de uma linha férrea de alta velocidade entre Madrid e Lisboa pode fazer algum sentido para Espanha, pois ela reforça a centralidade ibérica de Madrid. Mas para Portugal não faz sentido nenhum. Não vai gerar tráfego que economicamente a justifique, nem colmata a falta de uma via de escoamento das mercadorias portuguesa para a Europa. Além disso, vai fazer com que mais empresas desloquem os seus escritórios centrais para Madrid.
Este é um projecto espanhol, que vai ser gerido por espanhóis, que terá material circulante espanhol, e até o pessoal afecto à exploração será também espanhol. E suspeito que as ementas do restaurante aparecerão escritas apenas no idioma de Cervantes.
Alguns números pescados na Internet, mais precisamente de um estudo publicado no insuspeito “site” da Rave, mostram que o tráfego total previsível entre as duas capitais andará por 1,6 milhões de passageiros/ano em 2033. E que 36% desse tráfego será, naquela data, afecto ao transporte ferroviário. O referido estudo fala, é certo, de um tráfego global de 9 milhões de passageiros. Mas estes são os números do tráfego intermédio, como, por exemplo, entre Lisboa e Vendas Novas, ou Talavera e Madrid. Ora este não é o tráfego que interessa ao TGV, e tais números só servem para criar confusão, ou tentar justificar o injustificável.
Feitas as contas, o estudo conclui que, em 2033, haverá 576.000 passageiros por ano (ou seja, 1.600 por dia) a fazer o percurso entre as duas capitais ibéricas. Não diz o estudo como foi estimada a evolução temporal deste tráfego, e estou em crer que tenha sido de forma optimista e exponencial, como de costume, para justificar o investimento. Admitamos, com benevolência, que nos primeiros anos da vida do projecto haverá 1.000 passageiros por dia, 500 em cada sentido. Isto corresponde a um comboio de 8 carruagens, com 60 passageiros cada, a fazer diariamente um percurso de ida e outro de volta.
A agravar as coisas, convém lembrar que estes passageiros serão roubados ao novo aeroporto e, uma boa parte deles, à transportadora aérea nacional, numa ligação que acredito seja de boa rentabilidade. E vamos nós, em tempo de vacas magras, construir uma linha (que ainda por cima não é dimensionada para o tráfego de mercadorias) e uma nova ponte sobre o Tejo, para transportar mil passageiros por dia?! São demasiados custos para tão fracos benefícios.
A propósito de mercadorias, vem a propósito referir que, viajando pela Beira num domingo de Fevereiro passado, apenas entre as 11:00 e as 11:30 da manhã, contei eu 80 camiões TIR na A25, entre a Guarda e Vilar Formoso. E apenas no sentido da saída de Portugal.É este o caminho natural de Portugal para Europa. Muito do tráfego de mercadorias que utiliza esta ligação rodoviária poderia ser feito por caminho-de-ferro, com economia de meios, de pessoal, de energia e mesmo do ambiente. Mas isso não pode acontecer, porque a linha férrea acaba em Irun, na fronteira entre a Espanha e a França. A partir daí a linha francesa é mais estreita (tem a bitola europeia), e os comboios não podem ir mais além sem um inconveniente transbordo. É por essa razão que não se transportam mercadorias de Portugal para a Europa por caminho-de-ferro. E depois de construída a linha do TGV para Madrid a situação não mudará, pois a linha é só para passageiros, e o caminho por Madrid não é o que interessa ao escoamento das mercadorias portuguesas.
Negoceie-se, pois, com os espanhóis, a urgente e prioritária construção de uma linha de bitola europeia, pelo percurso da linha da Beira Alta e com seguimento por Valladolid e Burgos até à fronteira francesa. A pensar nas mercadorias, claro. Nas mercadorias que necessitamos de importar e de exportar para lá dos Pirenéus.
Com o TGV previsto para Madrid, Sócrates não ficará na história pelos bons motivos. E o direito a estátua, ou a nome de rua, talvez o ganhe em Madrid, ou Badajoz.