Quem teve sorte foi a avó basília, que chegou antes de todos, na cadeira de rodas. Dois netos patinharam rampa acima, fincando os pés nas gretas da calçada, até depositarem ao cimo da ladeira esta rainha. Tamanha canseira nem a dos palafreneiros de el-rei dom joão quinto, quando o magnânimo vinha aqui subir a encosta e abrir o peito ao espavento dos torreões da sua mafra, que haveriam de torná-lo imortal. Fosse como fosse, a verdade é que a velhota, os pêlos do mento escanhoados a preceito e o restante do carão aplainado por cremes e pós-de-arroz muito oportunos, logo tomou lugar à frente, na coxia central da grande nave da basílica, não queria perder pitada da função.
O pior foi que muitos convivas rebanhavam ainda na larga escadaria quando a noiva chegou, e já não puderam entrar. Porque ela apoiou o cansaço das olheiras no cotovelo solene do padrinho, deixou que a frescura do templo lhe cerrasse as pálpebras azuis, ajustou o passinho miúdo aos acordes imponentes das tubagens do órgão e deixou-se levar. Dir-se-ia que levitava, hirta, nave acima, de bouquet na mãozinha fria, enquanto flutuava por cima das leis da física, o corpo de libélula a dissolver-se na abundância de folhos, entre sedas e organdis. E atrás dela, na mesma lentidão sisuda de majestade reinante, lambendo o chão num rumor de setins, logo começou a entrar na igreja a cauda do vestido.
Quando a noiva chegou ao altar e se apoiou, exausta, no genuflexório, ainda o vasto caudal se alongava pelo largo fronteiro, vindo lá do fundo da avenida que chega da ericeira. Andavam os pobres caudatários numa fona, afugentando cães, espantando choferes irritados, os veludos do fato em desalinho. O manto continuava a desaguar na basílica, enchendo o pórtico de umbral a umbral, em volutas de tafetás e tules.
Radioso a princípio, o semblante do padre foi-se fechando à medida que o tempo se escoava, sem aparecer o fim da cauda nupcial. Ele conhecia como ninguém os caprichos do mundo e das suas criaturas. Mas não pôde evitar a sombra duma inquietação, à medida que foi vendo a metade fundeira da igreja afogar-se em castelos de cambraias, os convivas, em temor, a rodearem o altar.
E foi quando o pânico ameacava já tomar conta da assembleia que a fímbria derradeira do manto entrou na basílica. Perante o arrebato de quantos protestavam lá fora, tão insolitamente impedidos de assistir à função, o padre ministrou rapidamente o sacramento, era o que podia fazer. E logo desapareceu na sacristia, desparamentou-se e saiu pelas traseiras.
Abandonado a si mesmo naquela clausura, de que ninguém lobrigava forma de sair, esteve o concílio a pontos de perder a cabeça. Houve quem tivesse a ideia de lançar fogo a tudo, alguém sugeriu que era melhor saltarem todos pela janela, abandonando os tules inúteis.
Acabou, afinal, por vir a desvendar-se que tudo não passava duma tramóia, engendrada por uma estação de televisão em desespero de audiências. E foi então que a avó basília, incomodada por tamanho desperdício, chamou de parte a neta e lhe disse ao ouvido, que sempre encontrará na vida o que precisa quem guarda o que não presta.
Tal foi o que lhe disse, como foi o que se fez. Recordado das antigas campanhas da guiné, o padrinho chamou em apoio um pelotão de infantaria, que saía em manobras do quartel vizinho. Ajudaram todos a enfardar cambraias e setins, veio mais tarde a noiva recolhê-los, depois da lua-de-mel.
Tinha razão a avó basília, tamanho jeito lhe vieram a dar para tapar as misérias, durante um ror de anos.
[ibidem]