A bem dizer, o sempre temido, porque sempre iminente naufrágio desta barca adornada que é a nação portuguesa tem raízes antigas. Vem desde o século XV, quando um restrito grupo de rapazes notáveis, centrados na corte e alienados do interesse geral, encontrou artes de fazer valer as temerárias e fatídicas opções da expansão para o Norte de África. Firmadas as pazes da Independência contra Castela, a tomada de Ceuta (1415), o desastre de Tânger (1437), e os avanços do Africano para Alcácer-Ceguer (1458) e Arzila (1471) foram os primeiros e hesitantes passos duma construção imperial improvisada sobre as dunas, que havia de agrilhoar o país ao capricho das marés da história durante séculos. Pelo meio não faltaram episódios de fogo e ranger de dentes, nem fomes, frustrações e bancarrotas. E tudo acabou em algazarra, em 1975, quando o país de marinheiros voltou à barra do Tejo, naufragado e exangue, com a alma cheia de remendos.
Não era sem motivos que o país assim voltava, mais pobre e mais desgarrado do que partira. Porque a edificação e manutenção do império lhe condicionou e tolheu sempre toda a organização e progresso da política, da economia e da sociedade. A própria existência de Portugal como estado independente ficou associada à manutenção do império e das colónias.
Durante séculos, houve uma permanente sangria de portugueses para o império: militares, funcionários, comerciantes, missionários, aventureiros, emigrantes, exilados, degredados, prostitutas, órfãos... Muitos deles jamais regressaram a Portugal, que nos inícios da aventura pouco mais teria que um milhão de habitantes.
Esta hemorragia humana é uma das grandes causas do atraso do país. Já que, do mesmo passo que o despovoava, adiava e desobrigava a solução dos seus reais problemas, uma vez que todas as prioridades eram outras. E assim os portugueses partiam para fugir à pobreza agravando a própria pobreza, porque perdiam energias e motivos de renovação.
As actividades de além-mar (mormente a sempre escamoteada prática da escravatura) deixaram persistentes marcas na mentalidade dos portugueses: levaram-nos a desvalorizar e menosprezar o trabalho; condicionaram-nos para o lucro imediato e a especulação; empurraram-nos para áreas e tarefas de trabalho pouco qualificado; e sobretudo permitiram-lhes descuidar, se não desconhecer totalmente, os métodos de melhorar a organização da sociedade, a eficiência do trabalho e os problemas da economia.
As elites dirigentes (a nobreza e os altos funcionários) viviam dos rendimentos gerados pelas possessões, ligados ao tráfico, ao comércio e à exportação da população. Esse estado de coisas alimentou-lhes uma mentalidade parasitária e bastarda, que as alienou dos demais estratos populacionais. Não eram as elites que estavam ao serviço do país, bem ao contrário, era o país que estava ao dispor delas.
Um tal quadro impediu e logrou o desenvolvimento duma cultura de cidadania e de responsabilidade cívica, sem a qual não há um país moderno, nem uma sociedade desenvolvida. E ainda hoje não foi ultrapassado. Segundo a regra geral, políticos, gestores, administradores, funcionários, empresários, intelectuais… têm mais como objectivo o tranquilo usufruto da nação, do que o bem e o progresso do povo e do país.
O fim do império veio pôr em causa os mecanismos desta mentalidade secular, que vivia da exploração das colónias e da população exportável. Os portugueses viraram-se finalmente para si próprios e para a Europa. Mas as entorses permaneceram activas na consciência, na mentalidade parasitária, no desprezo pelo trabalho e pela inovação dos métodos.
A entrada na Europa foi uma faca de vários gumes, com efeitos contraditórios múltiplos: a exigência duma transformação profunda, que não se logra numa geração; a síndrome sebastianista duma nova e exótica árvore das patacas, que nos há-de resolver os problemas; o deslumbramento sempre fatal dos novos-ricos; o desvio e o malogro dos fundos europeus; a competição desarmada com os outros parceiros, incompatível com estruturas e mentalidades passadas; a incompetência, o laxismo e a venalidade das elites instaladas, confrontados com a exigência e a responsabilidade indispensáveis.
Pelas elites históricas, ela já era encarada como simples objecto de exploração. Nos tempos de hoje, e perante uma situação de crise internacional múltipla e grave, a uma crescente fatia da população do país acaba por restar apenas a descoberta de novos caminhos de emigração.