Pierre van Paassen (1895/1968) foi um jornalista holandês que acabou naturalizado americano. Estes Dias Tumultuosos, obra notável de pendor biográfico, veio à luz na América, em 1939. E teve edição portuguesa, em 1946, na Livros do Brasil.
Pelas suas páginas passam menos as peripécias pessoais, e mais os acidentes, os sucessos e as tragédias do seu tempo. Mutatis mutandis, a aragem que nelas corre faz lembrar os tempos de hoje, em que também chacais andam à solta, numa história mal contada. Talvez por isso, dou comigo a lamentar só conhecer este livro com cinquenta anos de atraso. Que me lembre, nunca me aconteceu.
Em 1917, milhões de corações fatigados remoçaram ao calor de uma nova esperança. A infinita paciência dos povos martirizados atingira o ponto de exaustão. (...) Para obstar à explosão, os governos calafetaram previamente todas as fendas e sentaram-se em cima da tampa. (...) Ganhava terreno a convicção de que os povos tinham sido vítimas de um logro colossal e sangrento. (...) Aumentava entre as massas a indignação ante os tesouros incalculáveis que eram esbanjados na loucura da guerra, ao passo que o apoio financeiro às medidas que visavam o melhoramento das suas condições sociais nunca se obtinha sem estrénuas lutas. (...)
Ainda se falava, na imprensa e nos escritórios de propaganda, em hunos trucidadores de crianças e senegaleses canibalescos, mas nas trincheiras já muita gente se havia curado da mistificação. Os quatro anos de guerra justa tinham acumulado mais ruínas e monstruosidades do que os senhores feudais e a Igreja reunidos, nos seus dez séculos de incontestável omnipotência. (...)
Os poilus franceses começaram a debater entre si a volta para os seus lares, antes que a guerre à outrance de Clémenceau atingisse a sua horrenda plenitude. Na primavera de 1918, André Maginot reconheceu, em sessão secreta da Câmara, que entre a cidade de Paris e a linha de combate só restava uma divisão em que o governo podia depositar absoluta confiança. A bandeira vermelha fora içada sobre a refinaria de açúcar, em ruínas, de Souchez. Um regimento alemão respondeu a isto entoando a Marselhesa, e atravessando a terra de ninguém para confraternizar com os inimigos. (...) Tornou-se necessário proibir às tropas britânicas toda a conversação com os prisioneiros alemães. A imprensa truncava as listas de baixas. (...)
Morriam ainda diariamente dezenas de milhares de homens. Mas nos castelos, longe da explosão das granadas (...) os generais e políticos aliados continuavam a contender entre si sobre pontos de precedência e prestígio. (...) O desacordo entre os homens dos galões de ouro ameaçava prolongar a guerra indefinidamente. (...) Rebentaram revoltas. (...) Os conselhos de guerra funcionavam noite e dia. Por um simples murmúrio de desagrado dizimava-se uma companhia inteira. Enviavam-se divisões propositadamente à linha de combate para serem chacinadas, esmagando-se assim o espírito de derrotismo. (...)
Os censores redobraram de esforços para obstar a que o povo conhecesse toda a extensão do horror. Nas grandes cidades, clamorosos cartazes advertiam toda a gente contra as intrigas sinistras dos pacifistas, dos agentes inimigos, do ouro estrangeiro, e também contra os emissários da extinta Internacional do Trabalho. Impunha-se silêncio às multidões. (...) Uma vez que, em tempos de guerra, uma mentira capaz de elevar o moral das tropas e da população civil vale mais que um milhão de verdades, organizaram-se as fábricas de mentiras. Elas levaram as universidades no arrastão. Sábios e intelectuais, escritores e homens de púlpito, todos aqueles que se desvaneciam de amar a verdade pela própria verdade, puseram-se a uivar em uníssono com a matilha. Os homens abriam mão das suas convicções tão facilmente como das suas vidas. (...)
Em Verdun, no Chemin des Dames, na Flandres, o holocausto a Moloch, a dança macabra atingia a sua obscena culminância. Os exércitos haviam recebido novas armas dos laboratórios. Fazia-se largo uso do gás asfixiante. Efectuavam-se novas experiências com bacilos morbígenos. Embora essa invenção diabólica não fosse utilizada em 1918, permanecerá para sempre o estigma infamante da geração pervertida e desumanizada que pensou a sério em empregá-la. (...) O monstro era insaciável. A Europa do cristianismo e do humanismo chafurdava num tremedal de sangue e servia de pasto aos piolhos.
Chegaram então da Itália notícias sobre a ocupação das fábricas. Surgiram as dissenções entre as equipagens dos submarinos e o comando naval alemão em Kiel. (...) Os alsacianos que serviam no exército alemão passaram-se em massa para a França. Os conscritos franceses iam buscar refúgio na Suíça e na Espanha. Os bósnios desertavam das duas águias dos Habsburgos para irem ter com os seus irmãos sérvios. Um exército checo vagueva sem rumo pelas planícies moscovitas. (...) Na França, as forças da Rússia Imperial que tinham sido transferidas de Odessa para levantar a moral dos aliados, e que se cobriram de glória em Verdun, negaram-se a lutar assim que a Rússia se retirou da guerra. Foram desarmadas e chacinadas, em número de dez mil, por ordem de Foch, a fim de preservar o exército francês do vírus revolucionário. (...)