(...)
Confundido e perplexo quis retirar-se dali. E foi ainda um Camilo complacente que o salvou do embaraço e encurtou a retirada. De ânimo assim enfraquecido, ainda subiu as ladeiras de Castelo Rodrigo, onde foi ouvir dizer que o assanhado povo deixou nesta ruína o palácio do Cristóvão de Moura, quando os Filipes se foram. O viajante discorda, mas não faz alegações. Já sabe o que a casa gasta, já se cansou de ouvir lendas, já lhe sobra o cepticismo. E por fim foi um paisano, arrimado a uma cerveja, que o trouxe à realidade com a história do Colmeal.
Abrigada numa dobra da Marofa, num ângulo de ribeiros que se despenham na encosta, a aldeia do Colmeal foi durante séculos um feudo dos Cabrais. Os donos foram-se ao mar, mas as cabras do brasão lá ficaram até hoje, pintalgadas num frontão.
Vieram depois morgados e burgueses, que ficaram gerações. E em 1957, ao fim de grandes enredos que ninguém sabe explicar, tudo acabou na ruína, a mando dum tribunal. Para cumprir as ordens dadas foi a aldeia posta em guerra, e os servos dela corridos à sabrada por um esquadrão de cavalos. Desde então ficou deserto o Colmeal, é um salto daqui lá, pela escamungada fora na direcção de Pinhel.
O viajante não foi ver com os próprios olhos. Nem o tempo lho consente, nem há-de ser de fiar uma estrada a que puseram tal nome. Mas rendeu-se às evidências, disse adeus ao velho burgo e tornou, conformado, à sua rota. O que ontem se passou no Colmeal, por sentença dum poder, foi uma pequena imagem do que ao país aconteceu há séculos, a mando duma elite aventureira e cúpida. E é uma versão modernizada que lhe está a suceder nos dias de hoje, às mãos duma casta renovada.
A fronteira já vem perto, brilham ao longe as luzes dum povoado. E o viajante, que parece despertar de algum encantamento, encosta à berma o cansado companheiro. A noite já desfez na escuridão os vultos das azinheiras que dormitam na paisagem. Mas num remoto lugar os guarda ele, que agora cruzou a estrada e avança, resoluto, a corta-mato. Salta paredes que tem por familiares, forceja trilhos que lhe não guardam segredos, tropeça nos aramados da pecuária extensiva mas não pára. Amacia na passagem os braços duma giesteira que lhe ficou na memória, dir-se-ia atrás dum passador e vai sozinho. Já galgou a ribeira dos Tourões, sobe a encosta a ladear fraguedos, detém-se um pouco debaixo deste carvalho como quem fareja a brisa, e meia hora de caminho andado chega ao marco fronteiriço da Alta Rasa. Por trás da serra da Gata rompe uma lua vermelha, de barro da Andaluzia. Ao fundo passam faróis de automóveis apressados, na carreteira espanhola. E o viajante vê neles a minúscula viatura que um dia nela passou e o levou para muito longe.
Agora de longe veio, à procura dum país, sem o achar. Que Portugal nasceu do capricho dum príncipe. E dele nem os portugueses fizeram um país, distraídos a vadiar por sertões a cavalo no vento, nem encontraram, no vasto mundo inteiro, quem por eles o fizesse.
Ficaram com a paisagem, que povoaram de desespero. E acolheram-se a esta loucura mansa, trágica e dócil, que ilude a realidade. Precariamente sobrevivem nela.
A vida toda será uma viagem, e a história dela a soma de mil partidas. Se delas houve que não tiveram chegada, nenhuma será sem fim. A deste viajante acaba aqui.