quinta-feira, 15 de julho de 2010

SNS

O ancião é bisavô há muito, mas há muito não vê os bisnetos, porque os olhos deixaram de funcionar. Nasceu há perto dum século, está quase a dar a volta no conta-quilómetros. E desde há meia dúzia de anos que lembra um vegetal.
Incontinente, se o estendem na cama, ali fica. Só se move se o moverem. Quando o sentam no sofá, lá fica debruçado. Come bem se o pitéu lhe agradar, e lho meterem na boca. Umas vezes acena um monossílabo, outras vezes nem tanto. O que lá vai dentro ninguém o sabe ao certo.
Há tempos o coração deu em falhar. E uma filha, que faz vida na Saúde, levou-o ao hospital. Afrontando a opinião do clínico de serviço, e porque o seu dever é conservar a vida, impôs ao ancião um pace-maker.
Agora dizem que a pilha garante mais sete anos de batimento cardíaco regular. Tantos como os que Jacob serviu Labão, que era o pai de Raquel, serrana bela. Porém esse não servia ao pai, servia a ela. E aqui se repete o caso, na forma duma pilha. Que crucifica o pai, mortifica a família, parasita o sistema, e só serve a cegueira, a paranóia, o falso humanitarismo e os desarranjos da filha.