sexta-feira, 20 de março de 2009

Vidas vãs - 1

Em Abril, quando chegava a Páscoa, floriam os lilases na Casa Grande. E era um aroma a espalhar-se por hortas e caminhos, cobrindo o povo da Cruz de Pedra ao terreiro da fonte, como espuma dum vinho novo, do largo da capela até ao Soito Longe. O sol varria do céu os restos do inverno, o casario emergia da bruma cinzenta e deixavam de fumegar os telhados vãos, de telha mourisca irregular, por onde escapavam as fumaradas do tempo frio. O lar eram duas pedras encostadas à parede, ardia o lume cercado das duas panelas de ferro onde fervilhavam as couves, e ardiam também os olhos, que um chupão era luxo de casa rica. Um tabique de madeira isolava o escuro quarto interior, onde a cama de ferro, coberta de mantas de burel, ocupava o maior espaço, havia pagelas de santinhos espetadas em pregos, onde esquecidas devoções criavam bolor, e um retrato de mocidade antiga envelhecia na escuridão, que só a vaga luz da candeia de petróleo às vezes perturbava.
Para lá da parede ouvia-se, ao correr das noites, o remoer de queixais da mula trilhando o feno ressequido, as mais das vezes era palha centeia o que lhe sobejava, e também para ela o aroma dos lilases da Casa Grande trazia promessas de erva renovada à beira dos caminhos, quando não a fartura duma tarde inteira num lameiro fresco.
Nesse tempo era o povo um formigueiro de gente, e minguadas as terras para acudir a tantas bocas. Das fragas do Chão de Poio até à rua das Lorgas não havia buraco vazio. Casavam-se os homens e as mulheres, o sangue a ferver-lhes nas veias e a cabeça a sonhar sonhos impossíveis, empenhavam o cordão, se a rapariga o herdara, para dar um jeito ao palhal, para correr o telhado e limpar as toscas traves da fuligem de séculos, onde viveram bichos podemos bem agora ter nós a primazia, sempre é alguma coisa, neste canto fazemos a cozinha, o quarto ali ao fundo retirado, à entrada fica a sala, com umas ripas de madeira tudo se compõe, aqui fica a arca da roupa, ali a cama onde nos havemos de deitar, outros se acharão pior.
Depois vinha o primeiro filho, eu se pudesse ter uma terra nossa, arrendada que fosse, havíamos de conseguir que nos abalassem de casa as precisões, o mês de Maio tão bonito e a pilha das batatas a minguar na loja, mulher, as fanegas do pão vazias, as árvores tão floridas e nada que penda da figueira para consolar o estômago, quando chegará Setembro.
Ainda agora vai Abril a meio, tiram-se os estrumes dos cortelhos e amontoam-se na rua antes de os levar para engordar as terras, salgadas terras estas que só a poder de suor consentem um renovo, é um fedor fermentado durante o inverno inteiro, não chega o aroma dos lilases da Casa Grande, doce como as vertigens dum vinho novo, para desempestar esta aragem.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse. As courelas do Alagão, as corgas do Ribeiro de Pau, uma horta qualquer à beira dum valado, ninguém sabe hoje dar razão do caminho que levaram, nem como foram assim parar às mãos que delas tomaram posse, doutores que vivem longe, nas vilas e cidades deste mundo, tão alheios e distraídos delas que nem os nomes lhes conhecem, nem que limites têm, nem os caminhos que a elas levam. Se vivessem do aconchego das mãos dos donos, já todas as terras tinham morrido de abandono. E no entanto não se revoltam, nem elas nem quem por elas sofre, nem quem com elas sonha, se será assim já desde o tempo da lei das doze tábuas, como haveremos de viver com esta lei, não sei.
(...)