segunda-feira, 23 de março de 2009

Vidas vãs - 4

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Depois de muito peregrinar e muita fome engolida, dei comigo um dia a trabalhar num armazém de vinhos do Beato, à entrada de quem vai para Lisboa. Às vezes parecia-me que nada tinha sentido, e que o mundo era uma grande romaria sem ordem nem destino, onde erravam ao acaso os vagabundos como eu, para quem não havia lugar certo. Mas eu já tinha aprendido a grande escola de não fazer perguntas ao mundo, farto de saber que ele não tinha respostas para me dar. Calava-me a assistia a tudo com indiferença, ao esbracejar dos homens e aos afagos da chuva quando vinha, aos incómodos tanto como aos prazeres de cada dia. Trazia comigo a grande ciência do silêncio, e esta muito maior de saber que o mundo, tal como é, gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, como se tudo já estivesse escrito nos livros da criação, que nenhum homem pode mudar. Muito menos eu, que não tenho merecimentos nenhuns. Por isso me calava e virava costas.
E foi assim. Um dia apanhei o comboio para Lisboa e desci na estação de Braço de Prata. A bem dizer a cidade metia-me medo, mais pelo que imaginava do que por aquilo que dela conhecia, que era coisa nenhuma. Um homem passa a vida a ouvir falar dos males e perigos do mundo por aí além, e nunca fica a saber a verdade nem as intenções de quem fala. Cheguei aqui de saco sacudido, sem porta onde bater, de modo que me arreceei e fiquei por ali. Pus-me a andar ao longo da linha, havia umas casitas baixas encostadas em fila, como irmãs gémeas, era primavera e ainda me lembro da roupa que pendia ao sol nos quintais minúsculos, mal cabia neles um pé de alface e duas couves. Mas foi o drapejar da roupa branca que me pesou na alma e me fez afastar dali.
Ao cabo de algum tempo dei com um homem a gadanhar na horta umas ervas bravias, a linha do comboio a um lado e o largo rio a outro, e era tanta a água que assim devia ser o mar. Disse-me que era para os coelhos que tinha lá em casa, e tendo achado estranha a minha fala perguntou-me ao que andava, coisa a que eu não soube responder. Pedi-lhe emprestada a gadanha, e foi no decorrer do trabalho que ele repartiu comigo a merenda, e ficou a saber que vida era a minha. E no dia seguinte encaminhou-me para o armazém de vinhos onde fiquei.
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