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À saída o calor abrandou e a jornada continua à espera. Mas o viajante não irá daqui sem ver a obra dos pedreiros. Fica ali perto sobre uma colina, a derramar-se para a estrada. É obra de um só piso, vasta como os sonhos do dono. E o viajante, escarmentado com as fealdades que tem visto, muito se regozija com o novo padrão deste arquitecto. Há demasias no jogo das colunas, e a singelez dos capitéis não esconde alguma pretensão. Mas há nele um pudor de volumes, e um desusado equilíbrio de formas, que mantêm algum respeito pela paisagem e não ferem o olhar. É uma alteração de paradigma. E ao lembrar-se do que deixou lá para trás, o viajante faz votos de que o novo figurino acabe por vingar.
A estrada que espera o viajante vai seguindo para norte, e percorrê-la é mergulhar num áspero reino de fraguedos. A ribeirinha Teja começa aqui a tomar corpo, a desbravar caminho na direcção do Douro, aonde chegará depois do despenhadeiro do Vesúvio e muitos sobressaltos. Assustado com tamanhos penhascos, que de ambos os lados ameaçam cair-lhe em cima, o viajante aproveita a companhia duns freixos ribeirinhos, que seguem a linha de água. Poucos mais verdes há na paisagem.
Porém o viajante gosta destes caminhos. E ao ver as estradinhas cuidadas e escorreitas, nestas aldeias por onde tem andado, não consegue fugir à cínica suspeita. Ou o país mudou muito, o que seria um bem, ou anda alguém por aqui a exceder-se nos gastos, e as faltas vão aparecer no balanço das contas. Duas coisas a história nos diria, se lhas fôssemos perguntar. À uma é que toda a vida foi escasso o orçamento, e as faltas nele um lugar comum. E às duas é que em tempo nenhum tiveram iguais direitos os portugueses todos, seja nas vacas gordas, seja nas mais esbeltas. Um dia alguém comparou Portugal a uma aranha, e com razão o fez, que todo ele não é mais que barriga, centrada na capital. Para gosto e consolo de alguns filhos, sobrou sempre o desamparo de enteados. Mormente destes que por aqui vivem, a si abandonados em tais ermos, como temos observado. Hoje em dia muito se vai ouvindo que o país é democrático e moderno, que transpira progressos e já pertence ao clube dos ricos da Europa. A ver vamos, como diz o cego. Este viajante, cego não sendo, não é o que tem visto.
Para escapar a tão duvidosos pensamentos, o viajante liga o rádio do carro, à procura de alguma distracção. E em boa hora o faz, que não faltam no rádio insólitas novidades. Como esta que nos traz um fulano de Alcochete, ao fazer um apelo entusiasmado aos amantes do todo-o-terreno. Bem-vindos são, de qualquer lugar do mundo, desde que tomem lugar na fila que se vai organizar na estrada do Porto Alto, no próximo domingo. Com tão interessante iniciativa, há-de formar-se a mais longa fila de jipes de que há notícia, para entrar no Livro Guinness de Recordes.
Até aqui tudo vai bem, pensa o viajante, que não vê razões para estabelecer limites à excentricidade e à loucura mansa. Mas tudo muda de figura quando o jornalista quer saber qual é o interesse da iniciativa.
- É colocar Alcochete no mapa! É fazer a nossa terra conhecida e pôr as pessoas a falar dela!
O viajante fica impressionado com tanto amor à terra e tamanha fundura de pensamento, mas não augura nada de bom a esta necessidade de ouvir falar de si. Já conheceu muitas terras, algumas delas célebres. Mas não conheceu nenhuma que tenha chegado à glória, por razões tão compridas como uma fila de carros. Tomemos o caso de Guimarães, outro exemplo que agora mesmo nos salta do rádio. Nunca lhe escassearam fundamentos de celebridade, como é geralmente sabido. Porém, aos naturais, veio agora juntar-se um argumento novo e terminante. Foi ele o caso que trezentos alunos da cidade caíram de súbito doentes, todos ao mesmo tempo, em vésperas de exames. Valeu-lhes no aperto a providência médica, que logo forneceu atestados comprovativos. A três disciplinas por cabeça, basta fazer as contas, foram perto de mil as certidões, aqui d’el rei que a pneumónica assentou arraial nestas escolas. Falaram os jornais, o ministério acordou, lá acabou por mexer-se. Por isso vem a Lisboa esta manifestação de furibundos pais, que já tomaram conta desta rua, a exigir audiência com o ministro tão bravamente como estamos a ouvir. Que é lá isso de cortar aos nossos filhos a liberdade de ficarem doentes? Nem nos tempos do fascismo isto era assim!
Com tais heróis do mar fica pasmado o viajante, ou abismado, já duvidando do que está a ouvir, será tudo um delírio da sua cabeça, que apanhou muito sol. Acaba a ponderar que há uma nova razão para Guimarães merecer a fama que lhe assiste. Nenhum lugar no mundo anda mais precisado de vigilância médica, se não for antes o país inteiro a disputar-lhe a primazia.
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