quinta-feira, 5 de março de 2009

Portugalmente (29)

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Se outros pesos não trouxesse, bastaria o peso deste sol para acabrunhar o viajante. O que lhe vale é que para baixo todos os santos ajudam, mormente em se tratando destas quebradas perdidas do Cadouço, por onde tem que regressar. Como é que pariu a terra tantas pedras, razão tinha a pergunta do Manuel cabreiro!
O viajante chega estafado ao carro e acelera estrada fora, de janelas abertas, nem se lembra mais da coluna de fumo que já encheu o céu. O que lhe dava jeito aqui era um rio de mel onde matar a sede. Mas algum porto de abrigo há-de encontrar.
Por sorte sua está perto a catraia de Castaíde, onde a taberna que abrigou antigos viandantes cedeu lugar a um café moderno. Cá fora há uns assadores de carvão, e a filha do estalajadeiro está a preparar o almoço duns pedreiros, que andam a fazer uma casa ali perto. O viajante ouve dizer que o fogo começou na Póvoa e já comeu metade da serra do Feital. Ouvem-se roncar uns aviões por trás dos cerros das Terras Grandes, andam a combater o incêndio mas o fumo já se espalhou no céu inteiro. E ele está tão descrente destes combates perdidos, e tão descoroçoado do calor, que nem quer ouvir falar do fogo. Mergulha na sombra do café, decidido a não voltar à rua enquanto o pior não passar. Matou a sede, aproveitou para almoçar, e só depois da partida dos barulhentos pedreiros é que voltou a si. O hospedeiro, um homem de bigodes e de poucas palavras, anda azafamado atrás do seu balcão. O viajante quer pagar a conta.
- Arderam quando, as Terras Grandes?
O homem dos bigodes encara o viajante e fica a concentrar-se na memória. Levanta a mão como quem vai responder, mas finalmente abre uma gaveta e pesca lá de dentro um livreco sebento. Desdobra nele uma página e estende-a à frente do viajante.
- Está tudo aqui! Você sabe ler?
O viajante, que esperava tudo menos esta resposta, fica encantado com a oferta e volta a sentar-se à mesa. O que tem à sua frente é uma crónica do incêndio, num velho almanaque regional.
“A primeira vez terá sido por culpa dum brasileiro, duma terra qualquer. Ninguém o conhecia, nem soube dar notícia dele, mas a voz correu à solta. O homem chegou aí comido de saudades, peregrinou por terras e caminhos, e acabou um dia a assar sardinhas à beira do giestal, ali nos outeiros da quinta do Forcas. Era o dia 20 de Setembro de 1982 e a tarde estava soalheira. Mas à hora a que o vento se levantou do sul e se pôs a trotar sobre o espinhaço dos montes, o inepto cozinheiro imaginou-se nas vastidões do Mato Grosso e perdeu a mão às labaredas, ateadas ali no meio da rodeira.
No que restou do dia, e durante a noite inteira, viveu-se uma hecatombe. Os montes estavam saturados de carga térmica, se não é mais adequado dizer que estavam cobertos de arbustos e ramagens, de troncos abatidos e matorral sequíssimo, o desleixo e o abandono já por então faziam norma. Ora tudo isso ardia como paus de fósforo, era o final do verão.
O fogo correu altíssimo pelos giestais das Poisadas e os matos de Castaíde, entrou a galopar nos morros da quinta dos Cavalos e nos pinheirais de Golfar, atacou, era já noite, os carvalhais do Zaragata e da quinta do Boco, sitiou bocas de minas e valadões do volfrâmio nos cerros do Montrangão, varreu restolhos velhos na Perqueixada e restos de matas no Vale Ferreiro, lambeu pela madrugada os junçais do Safrial e da Laja da Seara, abrasou num ai os pinheirais dos Crespos, galgou o ribeiro das Águas-Vivas e avançou para a Sobreposta, e só veio a morrer no final da manhã, aos pés do castro de Casteição, porque o malvado vento quis descansar.
Cegas de pânico, as lebres tropeçavam nos lagartos azuis que abriam bocas desesperadas e fugiam alucinados pelas rodeiras do Ribeiro de Pau. E os corvos, num voo sem norte, largavam pragas pelo céu negro, ao chocar em carvões incandescentes, por entre a poalha de fuligens que lhes queimava as asas e os forçava a cerrar os olhos. Os caminhos estavam cheios do silvar agudo das cobras, ouvia-se a lamúria dos ratos do campo que protestavam contra a insânia do mundo, e os vultos dos homens impotentes tossiam, de enxada ao ombro, afogados na fumarada, por entre o estralejar dos gafanhotos que rebentavam como panchões da China. Um grande calor fazia explodir as veias dos pinheiros, em torrentes de seiva que desciam a arder como cascatas de lava, e que ao chegar ao solo retrocediam rápidas, subindo pelos troncos, no ar escuro, como assombrações doutro mundo. Os uivos aflitos da carne da terra chegavam à estrada da Castanheira, e o ronco surdo das combustões desenfreadas enchia de pavor todo o vale. Acabaram em cinzas quinze quilómetros de matagal entre a ribeira Teja e a estrada da Meda, nunca assim se vira tão desenfreada a besta do apocalipse.
A réplica da hecatombe havia de chegar oito anos depois, em inverso sentido. Por razões tão criminosas como fúteis, um marginal paisano resolveu incendiar o pinhal dum vizinho, no sítio das Raposas, lá para a Castelhana, ao tempo não havia ainda o grande charco da barragem cobrindo as várzeas. Era meia-noite e o povo andava batendo os matos incendiados com giestas negrais e pazadas de areia, quando entrou a soprar um vento ligeiro que subia do Douro. O fogo aproveitou uns restos de seara para escapar ao castigo e galgar a ribeira, alimentou-se nos matos rasteiros que haviam tomado o lugar dos pinheirais antigos, e na tarde seguinte acabava a morrer nas colinas da quinta do Forcas, no mesmo exacto ponto em que o brasileiro andara certo dia assando as sardinhas. Desta vez havia de cruzar a estrada da Meda, e por lá andou vitimando as matas que do alto das Sete Pipas se debruçam para a terra quente e os lameiros que vertem para a corda do Senhor da Pedra. Veio até a chamuscar as barbas inquietas dos castanheiros de Souto Maior e da Aldeia de Santo Inácio.
Das sementes que tinham escapado ao incêndio primeiro, milhares de plantas haviam germinado, lutavam por viver entre tojos e matos, e eram a salvação do monte. Mas nem uma resistiu à renovada selvajaria. A paisagem mudou, e agora nem sete gerações bastarão para que volte nela a frescura das sombras antigas, as flautas de Pã do vento nas agulhas, o verde longínquo dos pinheirais da infância.
O mundo tornou-se outro, se não é o mesmo que morrendo vai. Pasmam, confusos, os aldeãos a quem se paga para deixarem abandonada a terra. Pasmam, desertos, os campos, saudosos do trilhar dos gados e do rude gesto bíblico dos homens. Talvez possam os deuses evitar, pasmando assim os homens, que outras bestas apocalípticas venham um dia destes por aí. Mas isso ninguém o pode garantir, passado que está o tempo dos milagres”.
O viajante fica impressionado com o relato, não esperava tanto quando fez a pergunta. Desfaz-se em agradecimentos ao estalajadeiro e decide refrescar-se com mais uma cerveja, enquanto saboreia uma nova leitura. O homem acaba a oferecer-lhe o almanaque. E quando o viajante se despede, parece até que vai reconciliado com o mundo.
(...)