sexta-feira, 27 de março de 2009

Vidas vãs - 7

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Tudo isto me contou o meu sócio, em breve assim o poderei chamar, num dia em que lhe pedi que me arredondasse uma carta para a mulher, quando lhe mandei um bilhete de tostão, sem saber se alguma vez chegaria ao destino. Tudo isto e mais me contou o meu sócio, antes de me falar das revoltas de seles, de ambuílas e de sumbes a que ele próprio sobreviveu, sempre a reclamarem a impossível devolução das terras ocupadas pelas fazendas de café dos brancos, antes de me falar da morte da mulher levada pela biliosa sem que parisse filhos, esta terra é um cemitério de brancos, dizia ele, varados pelas azagaias dos pretos que descem a galopar dos morros ou sucumbindo a tremer aos febrões da malária que enxameia dos pântanos às primeiras chuvadas, é esse o mais certo destino que temos, não fossem os cardumes de filhos mulatos que por aí ficam a escorregar nas encostas, e nem se dava conta de que um homem tinha passado pela vida. Verdade ou mentira, dizia-se que ele deixava a sua conta, sem que tivesse apadrinhado algum.
Um dia morreu, tão surpreendido que me deixou nas mãos a gerência do estabelecimento, e o que logo às minhas crenças pareceu difícil viria em breve a revelar-se impossível. A rotina das horas a cumprir, a diária mesquinhez gananciosa que este ofício me pede, o sorriso de falsa humildade perdido com cada freguês, não é isso que me está na cabeça, e são estas contas muito mais do que eu posso fazer. Ninguém mudará o seu destino, e a condição com que nascemos com ela havemos de morrer, talvez por isso o mundo seja o que se vê, acaso estarão bem escritos os já falados livros da criação.
As contas da loja em breve hão-de ameaçar ruína, e um dia, para surpresa minha e puro capricho deste imprevisível mundo, chegará à baía de Benguela e descerá o portaló dum cansado vapor o meu filho mais velho, que fados o terão trazido até aqui, para me voltar a ver, disse ele, e procurar vida, será ele a solução para este meu caso, isto hei-de pensá-lo eu, com dois dias de escola que terá. Afinal sempre chegou ao destino o tostão malfadado, e mais pequeno é o mundo do que o tanto que parece. Assim ele virá e em breve há-de sucumbir aos febrões da malária que sobre dos pântanos, de olhos muito abertos numa surpresa infinda, bem verdade é ser esta terra um cemitério de brancos. Em seguida fecharei para sempre as portas do estanco, hei-de varrer da memória as paisagens e caminhos que os olhos me guardaram até hoje, hei-de esquecer-me de que alguma vez existi e me cansei de fazer ao mundo perguntas sem resposta. Juntarei as duas pretas que se ocupam da lavra de mandioca nesta cubata do bairro da Peça de Benguela, e talvez as névoas do maruvo me deixem ver ainda os cardumes de mulatos a miar morro abaixo, arrastando na poeira brinquedos feitos à mão, a caminho das margens da baía. O sol afogar-se-á todos os dias no mar, a deslado do morro do Sombrero, tingindo o céu do rubro das acácias. E talvez eu me dissolva nas memórias do mundo, se algum neto se não puser um dia a escrevinhar a minha história vã.