(...)
*
Trouxe-nos o velho vapor até Benguela, neste fim das Áfricas. Trazia o ventre a abarrotar de pipas de vinho e rolos de riscado, de missangas de vidro e quinquilharias de feira, que deixavam a luzir os olhos infantis dos negros, descobri isso mais tarde. Mas primeiro ocupámo-nos da estiva, era uma azáfama na casa da alfândega, os comerciantes da cidade, com um barco de longe em longe, andavam sempre falhos de mercadorias. Soltavam pedidos para um lado e disparavam ordens para outro, e eu desde cedo percebi ser este estranho mundo mais fácil de entender do que o velho mundo que deixara. Aqui havia sempre alguém em quem mandar, o ponto estava em ter a pele branca e escorrido o cabelo, isso bastava para ter sempre razão e sempre ter poder. De repente senti que mudara a minha condição no mundo, tão imprevista e surpreendente mudança assim inesperadamente acontecendo, éramos ontem capacho do mundo inteiro, de mão estendida como ínfimos párias da criação, hoje abrimos os olhos espantados perante esta multidão que está aí suspensa dum capricho nosso, não há como servirmo-nos, assim fui eu vendo fazer. Na verdade as leis do mundo continuavam iguais, mesmo se outra coisa parece ele sempre gira para regalo de meia dúzia e grande escarmento do resto, apenas mudara nele o meu lugar. E a euforia que isso me trouxe depressa tomou conta de mim como uma embriaguez. Mais longe fiquei do antigo passado, e mais esquecido da pequenez de tudo o que deixara. Pensei que era este um bom lugar para um homem refazer a vida, dei-me por ausente na hora da partida do barco e ninguém esperou por mim.
Pouco passou e já eu trabalhava na loja dum velho colono a precisar de ajuda e de reforma. Os brancos eram poucos nesta imensidão, e havia entre eles uma desconhecida cumplicidade. Com ela procuravam tapar os olhos do medo que sempre traziam às costas, se alguma vez o confessavam, sob esta capa de arrogância agreste e gananciosa.
Ele comprara em tempos a baiuca a um português degredado, que um vapor aí desembarcou. O dito fura-bolos em breve se meteu no negócio das caravanas, era o tempo em que elas traziam do sertão, ao lombo de centenas de pretos, carregamentos de cera e de borracha, de peles e marfins, e esvaziavam no regresso as prateleiras de bugigangas das lojas. Assim arrebanhou escravos para as roças de São Tomé quando os negreiros já tinham acabado, aguentou as revoltas antigas de bailundos e cuamatos, largou as barulhentas caravanas liquidadas pelo comboio inglês que trepara entretanto ao planalto, e acabou por fundar o estanco neste bairro da Peça de Benguela.
(...)