terça-feira, 24 de março de 2009

Vidas vãs - 5

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Passava as noites numa tarimba encostada ao fundo do vasto barracão, separada dos escritórios do patrão por uns tabiques de madeira, e a minha responsabilidade era manter o sossego das instalações e guardar as mercadorias. Eu aligeirava, claro, a minha tarefa, a um lado por me furtar a vigílias incómodas e dispensáveis, e a outro por haver sempre aberto um pipo, quando não um tonel, remédio santo em se tratando de arredondar a noite.
De dia era a vida mais agitada, havia sempre trasfegas a fazer e pipos a que limpar o sarro, os outros camaradas todos chamavam barris àquelas formas finas e bicudas, de longas aduelas estreitas, que os arreeiros recolhiam nas tascas e levavam de volta, estando cheias. E não acabava o dia enquanto houvesse uma carroça à espera de aviamento, atrás do olhar tristonho e paciente das mulas, que ouviam, resignadas, as boas e as más palavras dos patrões, muitas vezes esquecidos de lhes chegar o penso a jeito. Homens e bichos são afinal iguais por todo o lado, e estes já nem se assustam com o vozear do comboio a entrar na cidade, parece um animal aflito, estará apenas cansado, ou é o maquinista a anunciar que vai chegando ao fim a semana de ausência, alguém o ouvirá, quem sabe, além na encosta do bairro.
A mim, este pensamento só me traz desassossego. Nunca mais soube do que se passa em casa, onde também ninguém sabe de mim. Não tenho letras que cheguem para compor uma carta, e mais fraca é ainda a vontade que tenho de o fazer, tem a vida coisas assim, não sabe um homem se há-de arrepender-se dum gesto que ontem tomou, ou se há-de ficar contente por não ter hoje que viver de chapéu na mão.
O pago não era por aí além, ia-se nas despesas de alimentar o corpo e as outras dispensavam-se, o destino se ocuparia de calar a voz de algum filho que pedisse pão. Mas outro destino foi o que trouxe a praga da peste pneumónica que chegou à cidade, a princípio as pessoas falavam do caso como se estivesse longe e não fosse nada com elas, ali no armazém alguns até faziam graça da desgraça, beba-lhe um homem duas boas litradas por dia e não há moléstia que resista, eles lá sabiam. Mais tarde começaram a cair conhecidos, um parente, um vizinho coberto de bubões, as pessoas defumavam-se em casa com arruda e águas-bentas e evitavam os adjuntos. Mas isso já eu o não presenciei, que um dia vieram do rio uns marujos, traziam atrás uma corja de arreeiros a carregar uma partida de vinho que tinham que levar para a África. Fui com eles até ao cais, e vi pela primeira vez um barco de perto. Era um ferrabrás de metal e ferrugem, de tintas gastas e aspecto desleixado, trazia às costas uma alta chaminé escura que fumegava constantemente, fazia-me lembrar as máquinas que puxavam os comboios pela linha fora, sempre a vomitar vapor e fumarada, matraqueando nos carris. Estava preso ao cais por cordas mais grossas que os meus braços, e baloiçava ao sabor das águas como um velho animal cansado das viagens e indiferente ao mundo.
Creio que foi o cheiro daquilo tudo que me embruxou, se antes não era já o meu destino. Os marinheiros deixaram-me subir a bordo e por lá andei, e tudo aquilo era tão estranho, tão diferente do que eu conhecia, o mundo deve ser muito maior do que um homem imagina, se será melhor do que o pouco que a gente conhece. Tais eram os meus julgamentos, e foram eles que me levaram a pedir ao patrão que me desse trabalho no barco e me deixasse ir com eles para a África.
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